Um agente dos serviços secretos francês ou um elemento das milícias? Sete anos após a morte de Muammar Kadhafi, as duas versões sobre os últimos momentos de vida coexistem. Facto é que a intervenção estrangeira, iniciada sete meses antes, virou o tabuleiro do conflito entre rebeldes e o regime líbio contra o coronel..Inspirada na Primavera Árabe desencadeada na Tunísia em dezembro de 2010, a revolta na Líbia - como na Síria - degenerou em guerra civil. No país norte-africano, contudo, a França de Nicolas Sarkozy manobrou uma coligação internacional mais tarde transformada numa operação comandada pela NATO. A operação foi apoiada numa resolução das Nações Unidas que impôs uma zona de exclusão aérea no território líbio..Este foi um momento que marcou a política internacional do presidente russo, em especial perante a guerra da Síria. Vladimir Putin sentiu-se enganado pelo Ocidente por ter dado o aval à zona de exclusão aérea e questionou quem mandatou a coligação para atacar Muammar Kadhafi..[HTML:html|Libia.html|640|666].As últimas horas do coronel.Na noite de 19 de outubro, Muammar Kadhafi era um homem derrotado. Rodeado de um grupo de fiéis, o ditador vivia desde agosto na cidade natal, Sirte. Como um relatório da Humans Rights Watch sobre as últimas horas de Kadhafi pormenoriza, nessa noite o bairro foi alvo de um pesado bombardeamento..Mutassim Kadhafi, filho de Muammar, responsável pela defesa da cidade, decidiu que nessa madrugada deviam sair de Sirte. Mas a operação começou logo mal. Era suposto a caravana sair às 04.00, mas o atraso de quatro horas impediu a fuga de surpresa: a caravana de 50 veículos, com umas 250 pessoas, tem de dar meia-volta porque a estrada escolhida está cheia de milícias..Ao tomar a estrada principal, um drone da NATO lança uma bomba que atinge um veículo. A caravana prossegue a fuga por estradas secundárias e vai ter a um quartel ocupado por uma milícia de Misrata: inicia-se um combate com metralhadoras e lança-foguetes. Um avião de caça lança duas bombas tendo como alvo os veículos da caravana. Muitos dos ocupantes morrem nas explosões e nos tiros do combate..Kadhafi, de capacete e colete à prova de balas, uma pistola e uma espingarda automática, e o que resta do grupo tentam fugir pelos campos até desembocarem num grande canal agrícola, sob a estrada. Mas são detetados pelas milícias, que se encontram na estrada. Um guarda-costas de Kadhafi lança três granadas, mas a última atinge o muro e regressa para o meio do grupo. O guarda-costas ainda tem tempo para pegar na granada mas esta deflagra, matando-o, bem como ao filho do ministro da Defesa, Younis Abu Bakr Younis. Kadhafi fica ferido e a sangrar em abundância. Assim que é identificado, começa a ser insultado e a sofrer maus-tratos.."Quando capturámos Kadhafi, a situação transformou-se numa barafunda. Um grande número de combatentes cercou-o. Estava vivo quando o vi, portanto deve ter sido morto mais tarde. A cena foi violenta. Kadhafi foi levado para junto de uma carrinha, mas caiu. Foi uma confusão. As pessoas puxavam-lhe o cabelo e batiam-lhe. Nós não conseguimos controlar toda a gente. Alguns agiram sem qualquer controlo", declarou o comandante da milícia do leste de Misrata, Khalid Ahmed Raid..Como morreu Kadhafi, poucos sabem ao certo. No mesmo relatório da HRW, citam-se fontes da milícia de Bengazi: esta terá matado Kadhafi na sequência de uma discussão com a milícia de Misrata sobre que destino dar ao coronel. O homem que comandou o país durante 42 anos acabou enterrado num lugar não identificado no deserto..Anos de caos.O crime de guerra que coroou o fim de uma época foi um sinal do que estava para acontecer. A quantidade de milícias, brigadas revolucionárias e afins das mais diversas fações e tribos degenerou no caos. A Líbia iniciou um processo de democratização e foi a votos em 2012, mas em 2014 o país acabou dividido entre o governo de Tobruk, reconhecido internacionalmente, e o grupo islamista que tomou de assalto o Congresso Nacional, em Trípoli, após a derrota eleitoral..Pelo meio, o ataque ao consulado norte-americano de Bengazi - que resultou na morte do embaixador e três outras pessoas - levou à escalada de violência..Mais de três anos depois, em dezembro de 2015, chegou-se a um cessar-fogo, embora as notícias de confrontos sejam frequentes. Em termos políticos, o acordo de Skhirat previa a constituição de um governo de unidade nacional. Mas o país continua dividido entre zonas de influência e a presença de milícias e de elementos do Estado Islâmico são um obstáculo para a normalização da sociedade..Por outro lado, o vazio de autoridade deu espaço para o florescimento do tráfico de pessoas - e de escravatura, como denunciou a CNN. Grupos criminosos fizeram negócio com milhares de migrantes da África subsaariana, mas também da Síria e de outros países. Mais de 600 mil pessoas fizeram a travessia, nos últimos quatro anos, para Itália, sem quaisquer condições de segurança..[HTML:html|LibiaMig.html|640|450].Quem está com quem.Como lembra Mattia Toaldo, num guia sobre a Líbia publicado pelo thinktank Conselho Europeu de Relações Internacionais, naquele país há "muito poucos atores verdadeiramente nacionais. A grande maioria são atores locais, alguns dos quais relevantes ao nível nacional, representando os interesses de sua região ou, na maioria dos casos, da sua cidade. Muitos atores importantes, particularmente fora das maiores cidades, também têm alianças tribais"..O homem que declarou guerra às milícias islamistas, Khalifa Haftar, é um dos protagonistas do período pós-Kadhafi. Este general, que viveu exilado no Chade, no Zaire e nos EUA, está do lado do governo de Tobruk - agora em Baida - e nenhum acordo pode ser alcançado sem ele..A partir do quartel-general de Marj, no leste da Líbia, o militar de 73 anos comanda o Exército Nacional Líbio, e conta com o apoio do Egito, da Rússia, da França e dos Emirados Árabes Unidos.."A questão é se o general pretende desempenhar um papel dentro do governo de unidade nacional ou se quer ser o novo líder da Líbia. Creio que se inclina para a segunda opção. Acredita erradamente que seria capaz de governar o país inteiro, mas as milícias em Misrata e em Trípoli nunca irão deixar." A reflexão, de Arturo Varvelli, do Institute of International Political Studies, para a Al-Jazeera, é de janeiro de 2017 mas não está ultrapassada pelos acontecimentos..O Egito de Abdel Fattah al-Sisi - também militar, que chegou ao poder após depor os islamistas da Irmandade Muçulmana - tem interesse em apoiar Haftar. A sua luta contra os grupos extremistas e contra o islão político significa, aos olhos do Cairo, uma fronteira mais segura. E, caso a Líbia se fragmente, há que garantir uma estável Cirenaica (região leste do país). No entanto, em termos oficiais, o Egito apoia o processo da ONU, o que significa reconhecer o governo de Trípoli..Os Emirados Árabes Unidos já tiveram um papel mais importante no terreno. Mas até 2017, pelo menos, entregaram armas a Khalifa Haftar. O seu objetivo é, acima de tudo, combater a Irmandade Muçulmana. O poder deste movimento islamista exerce-se sobretudo na cidade de Misrata, através do partido Justiça e Construção, depois de terem sido expulsos de Trípoli em 2017, onde tinham um governo paralelo..A Rússia também está do lado do general. Nos últimos dois anos, Haftar deslocou-se a Moscovo e inclusive a um porta-aviões russo na costa de Tobruk. Há dias, o The Sun dava conta de que elementos das forças especiais e dos serviços secretos militares estavam ao serviço de Haftar e que a Rússia tinha estabelecido duas bases, em Tobruk e em Bengazi, a "coberto da controversa empresa militar privada russa Wagner, que já tem postos avançados". Segundo o tabloide britânico, as duas cidades contavam agora com sistemas de defesa antiaérea S300 e antinavio Kalibr..A embaixada russa em Londres desmentiu as notícias e lembrou que é uma "tentativa de alijar a responsabilidade da destruição do país e de ter arruinado milhões de vidas dos líbios para a Rússia, que nada teve que ver com o ataque da NATO em 2011, que violou grosseiramente uma série de resoluções da ONU"..A França, através de Emmanuel Macron, voltou ao dossiê líbio. De forma não concertada com os aliados, o jovem presidente juntou em julho de 2017 o primeiro-ministro do governo de unidade nacional, Fayez al-Sarraj, e Khalifa Haftar em La Celle-Saint-Cloud, nos arredores de Paris. Além de juntar as duas partes desavindas, nada de concreto avançou. As eleições previstas para este ano não devem ter lugar..Também Paris declara que só o governo de unidade nacional é o legítimo. No entanto, o governo francês apoiou Haftar com elementos das forças especiais. A morte de três militares a bordo de um helicóptero russo ao serviço do exército de Haftar, em 2016, perto de Bengazi, comprovou a intervenção até então secreta..Um ex-conselheiro do ministro dos Negócios Estrangeiros, Jean-Yves Le Drian, explica ao Orient XXI que a operação militar francesa no Sahel só pode ter sucesso se a Líbia tiver estabilidade. "Por isso, o executivo fez a escolha de Haftar.".Do outro lado, os grandes apoiantes resumem-se à Itália, à Turquia e ao Qatar..A posição da antiga potência colonial, a Itália, destaca-se pelo pragmatismo. Em 2017, Roma, devido ao fluxo de migrantes através das costas líbias, negociou diretamente com milícias para impedir o tráfico de pessoas. Também no ano passado, a Itália reabriu em Trípoli a sua embaixada e estreita relações com o governo de unidade nacional..Prova do envolvimento transalpino, a Itália vai acolher uma conferência sobre a Líbia nos dias 12 e 13 de novembro em Palermo, na Sicília. O interesse estratégico da Itália e da França, para lá das questões de segurança e das migrações, é também económico: as petrolíferas Total e ENI (como a espanhola Repsol e a austríaca OMV) estão no terreno..Por fim, o envolvimento da Turquia e do Qatar parece enfraquecido. Ambos estiveram do lado dos grupos revolucionários contra Kadhafi e apoiaram as forças políticas próximas à Irmandade Muçulmana. Ancara apoiou com armas a coligação derrotada por Khalifa Haftar, ao passo que Doha manteve laços com um militante extremista, Abdel Hakim Belhadj, que após a guerra civil chegou a liderar os militares de Trípoli. No ano passado, Belhadj passou a integrar a lista de suspeitos de terrorismo.