Sequestrados em Cascais. Toda a história do esquema que burlou milhares de chineses
Quando entraram naquela casa, situada numa rua de vivendas de luxo de Cascais, os inspetores da PJ mal conseguiam ver quem eram e o que faziam exatamente aqueles vultos sentados em frente a computadores, com auscultadores nas orelhas e a falar para pequenos microfones.
Cá fora era pleno dia, pouco depois da hora de almoço, mas dentro daquela casa era sempre de noite, escurecida em permanência com panos a tapar as janelas, para evitar olhares curiosos. Tresandava a tabaco e havia beatas por todo o lado, assim como copos de plástico amarrotados com restos de café.
A dezena e meia de operacionais da Judiciária enfrentaram a escuridão, começaram a abrir janelas e os vultos tornaram-se rostos. Uns assustados, outros indiferentes. Eram 17 ao todo - 11 rapazes e seis raparigas na casa dos 20/30 anos, naturais de Taiwan, e não falavam outra língua que não o mandarim.
Dias antes, dois agentes da polícia de Taiwan tinham estado na sede da PJ, em Lisboa, com a diretora da Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT), Manuela Santos, com a informação de que uma rede criminosa daquele país, que se dedicava a burlar pessoas através do telefone e teria bases em vários países europeus, poderia estar agora a usar Portugal, na linha de Cascais, como base logística.
A investigação dirigiu as atenções para aquela morada, uma vivenda de luxo que tinha sido alugada por seis meses pelo valor de oito mil euros mensais.
O esquema já era há algum tempo do conhecimento das autoridades de Taiwan, mas nenhuma outra polícia tinha conseguido o flagrante.
Alugam casas, por curto espaço de tempo, em países europeus para instalar equipamento telefónico e informático, com capacidade reforçada de internet, funcionando como autênticos 'call-centers', a partir dos quais fazem contactos para a China, burlando milhares de chineses.
"O modus operandi, muito bem elaborado e treinado, implica obrigar os jovens sequestrados a fazerem-se passar por funcionários de autoridades policiais e governamentais chinesas que contactam as pessoas para as convencer que acederam a conteúdos proibidos na internet e têm que pagar uma multa para não serem detidos", explica Manuela Santos ao DN.
Cada 'call-center' é normalmente composto por 15 a 20 pessoas, com um único responsável que trata dos contactos, organização, trabalho e horários. Outra pessoa fica encarregue da logística diária, compra de comida e outros bens de primeira necessidade para os 'trabalhadores'.
Os 17 jovens sequestrados na casa de Cascais tinham sido aliciados em Taiwan, com a promessa de trabalho fácil e bem remunerado no espaço europeu - nunca lhes sendo indicando qual é o destino em concreto.
"Numa primeira fase, pensavam que iam para França, mas depois vieram para Portugal. Aterraram em Lisboa em março e foram metidos numa carrinha diretamente para a casa de Cascais, de onde nunca mais saíram até os termos libertado na nossa operação em final de maio", revela a responsável máxima da UNCT.
Quando recordam o que aconteceu, Manuela Santos e Santos Martins, o chefe da brigada que conduziu as operações no terreno, não disfarçam a sua satisfação e admitem que não foi fácil perceber todo o alcance do esquema montado para enganar, a partir de Portugal, pessoas na China.
Logo que os jovens chegaram à casa de Cascais, o homem que os trouxe de Taiwan (e que foi detido pela PJ) tirou-lhes os passaportes e os telemóveis pessoais e nessa altura foram informados do que tinham de fazer: a sua missão era enganar outros chineses. Sob a ameaça de que, caso recusassem, as suas famílias e amigos sofreriam retaliações.
Receberam um guião com os passos da abordagem que tinham que fazer para convencer aquelas que seriam as suas 'vítimas'.
Treinaram os discursos uns com os outros, aperfeiçoando o tipo de linguagem e o domínio dos conceitos técnicos, até o recrutador entender que estavam aptos para contactos telefónicos reais.
Já com o esquema bem trabalhado e treinado, faziam-se passar por uma autoridade policial ou judiciária que abordava a pessoa a dizer que esta tinha cometido um ilícito de acesso irregular a conteúdos de internet não permitidos na China. "Pode acontecer que o alvo nem sequer tenha internet, mas como vão ligando para milhares de números, através de uma aplicação informática, há sempre alguém que atende e se enquadra nessa vulnerabilidade", assinala Manuela Santos.
Numa primeira fase não se falava em dinheiro, mas depois os contactos sucediam-se, já com novos papéis preparados. Os jovens faziam-se passar por membros do Governo, com grande poder, que dramatizavam a situação e pressionavam a pessoa para resolver o problema.
Nesta altura iam sendo pedidas várias informações pessoais às vítimas, desde a composição do seu agregado familiar, à sua atividade e rendimentos. Tudo era apontado em folhas de papel, tipo formulário, previamente preparadas.
A brigada da UNCT apreendeu alguns desses apontamentos em mandarim, que mostrou ao DN, mas a maior parte estavam destruídos e guardados em sacos de lixo preto espalhados pela casa. "Depois de completarem a operação e de o dinheiro ter sido transferido era tudo triturado em máquinas", especifica o chefe Santos Martins.
A informação obtida neste contacto servia para melhor preparar a abordagem seguinte. Na terceira e última etapa era então exigido o pagamento de uma verba para evitar a detenção da pessoa, a qual era avisada que já tinha sido emitido um mandado de captura em seu nome.
Alarmadas, todas as pessoas optaram pela transferência para um IBAN que lhes era fornecido pelo grupo. "Estimam-se em milhares de euros os proveitos", afirma Manuela Santos.
Na operação da PJ foram detidos dois elementos da organização. Foram apreendidos 25 telemóveis, outros tantos computadores portáteis e vários equipamentos wireless - as chamadas eram feitas com telemóveis sem cartões, só através de wi-fi.
Todos os arguidos e jovens vítimas já regressaram a Taiwan, pois a investigação portuguesa tinha por objetivo desmantelar este núcleo criminoso no âmbito do inquérito taiwanês.
A operação de sucesso foi mantida sob reserva a pedido das autoridades de Taiwan, pois pretendiam concluir a investigação naquele território.
Os 11 mil quilómetros que separam Portugal de Taiwan não foram fronteira para esta investigação e, com o contributo da operação da PJ, a polícia daquele país conseguiu deter o cabecilha da rede esta semana.
O Gabinete de Investigação Criminal de Taiwan elogiou a cooperação policial, num processo que, como salientou a PJ no seu comunicado oficial esta terça-feira, teve um momento histórico: "Esta foi a primeira vez na Europa que as autoridades policiais conseguiram desmantelar, em plena atuação, um grupo organizado deste tipo".