Portugal está doente. Está mesmo muito doente. Este é um dos poucos consensos nacionais, porque quando passamos ao diagnóstico, impera a confusão. Uns acusam a troika, outros o euro, muitos culpam os políticos, a banca, a Constituição, a justiça, a imprensa, a educação. Em geral todos têm razão, porque indicam sintomas do mal, que realmente é mais profundo..Portugal sofre de uma doença recorrente na sua história. Vimo-la ligada à pimenta da Índia no século XVI e ao ouro do Brasil no século XVIII. No século XXI os vírus são créditos da Europa, mas a síndrome é semelhante e os efeitos igualmente devastadores. Da primeira vez perdemos a independência, da segunda a corte fugiu para a colónia dourada. Desta vez ainda não sabemos onde termina a decadência, mas já vendemos boa parte do país às fatias..Esta infecção tem contornos bem claros. Portugal entrou na CEE em 1986 e na primeira década a preocupação era aproximar-se dos parceiros. Éramos pobres, atrasados e queríamos ombrear com os outros países europeus. Hoje, a palavra "convergência", que dominou a primeira fase da adesão, desapareceu do vocabulário político. Esse é um dos sinais mais evidentes da doença. Já poucos se preocupam com a nossa posição no clube europeu. Será que isso se deve ao sucesso do projecto?.O nível de vida, indicador mais utilizado para medir a referida convergência, seguiu um padrão ambíguo. Medido em paridades de poder de compra face à média dos 15 da União, o produto por pessoa em Portugal convergiu espantosamente até 1992, subindo de 53% da média comunitária em 1986 para 67%. Depois estagnou. No ano 2000 mantinha-se nos 67%, em 2011 estava em 69% e agora em 70%. Assim, pode-se dizer que Portugal convergiu uns anos, e depois desistiu..Só que a questão é mais complexa do que parece porque, em certas dimensões, o país até convergiu demais. Nos 30 anos de adesão, é evidente que os portugueses assumiram muitos hábitos, benefícios e exigências europeias, algo que não tinham em 1986. Mesmo nas zonas mais recônditas vêem-se consumos, infraestruturas e atitudes semelhantes aos parceiros mais desenvolvidos. Isso é bem visível em duas dimensões decisivas para o desenvolvimento, o trabalho e o capital, onde o nosso país não só atingiu o nível europeu, como ultrapassou-o..Em 1980 tínhamos a taxa de fertilidade (número médio de filhos por mulher) mais alta dos quinze da Europa, a seguir à Irlanda. Hoje, a nossa é a taxa mais baixa de toda a União, vivendo desde 2007 com mais mortes do que nascimentos e grande emigração. Pelo seu lado, a taxa de poupança das famílias, que até à adesão andava acima de 25% do rendimento disponível, no topo da lista europeia, agora está em 3%, a menor a seguir à Grécia. Como as taxas de fertilidade e poupança desceram em todo o Ocidente, o nosso movimento seguiu o dos parceiros. Só que, passando do topo para o fundo da escala, tivemos uma hiperconvergência..Onde não conseguimos avançar foi precisamente nos elementos centrais da União. O projecto europeu baseia-se na integração económica e na melhoria de produtividade. Ora aí, se Portugal avançou bastante, não conseguiu convergir. A soma das exportações com importações, indicador de abertura económica, subiu por cá de 60% do PIB em 1990 para 78% em 2016. Apesar disso, caímos de 12.º lugar para 22.º nessa ordenação dos 28 Estados membros. Quanto à produtividade, o produto por trabalhador a preços correntes aumentou de nove mil euros à data da adesão para 40 mil hoje, mas manteve-nos firmemente no último lugar dos 15 e ainda abaixo de Chipre, Malta e Eslovénia..A conclusão é algo que todos sabemos: nos 30 anos de adesão aprendemos depressa o estilo de vida europeu, mas sem adquirir os meios produtivos para o sustentar. Daí a dívida, a crise bancária, a estagnação económica e todos os mal-entendidos políticos e sociais. Hoje, com o capital a cair por falta de investimento e a força de trabalho a envelhecer sem fertilidade e com emigração, o país está literalmente a minguar..No entanto, tal como aconteceu na Índia de Quinhentos e no Brasil de Setecentos, as preocupações de dirigentes, intelectuais e cidadãos passam ao lado. O que interessa nas discussões é a troika, o euro, os políticos, a banca, a Constituição, a justiça, a imprensa, a educação. O essencial é a busca de culpados, não de soluções. Cada um protesta porque o que tem é menos do que lhe foi prometido e do que acha que devia ter. Como nos tempos da pimenta e do ouro, não se pensa se o que se tem é mais ou menos do que aquilo que se produziu..Portugal é semieuropeu, com regras, mecanismos e reivindicações da União, mas sem o correspondente aparelho económico. Esta é a nossa doença: exigir o que não se criou. Nos tempos do império isso foi conseguido indo buscar o que outros povos possuíam. Hoje também. Apesar de semieuropeus, estamos a preparar-nos para pedir de novo ajuda à União, a única hipótese de amenizar o doloroso colapso que aí vem.