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Lisboa

Édifícil olhar para a cidade onde se vive.

É difícil fazer uma viagem no tempo da geografia dos lugares, que como as plantas ganharam raízes e cresceram ou como os animais tiveram o seu ciclo cardíaco e partiram.

Falar de Lisboa.

Olho, agora, com um misto de melancolia e sentimento de ausência para a cidade. Melancolia, por o tempo me criar sedimentos de memórias, vida dentro da vida, percorrendo comigo cada rua, casa, panorama, as manhãs claras, as tardes de chuva, as noites ébrias, as madrugadas adentro.

O sentimento de ausência está cerca da perplexidade.

O meu olhar vê, mas cada vez que repara, dissipa-se no reparo.

Não sinto a cidade, não lhe consigo tomar o pulso.

As cidades são orgânicas, fluidas, com pés e cabeça, braços, pulmões, coração. Como outros seres, podem ser objeto de desejo. Ora eu tenho dificuldade de possuir, de amar, esta Lisboa.

A cidade está mais elegante. Na sua frente de rio renovada; na parte pombalina recuperada; na colina do Castelo fervilhante; nos bairros que ligam à cidade nova - o Parque das Nações - o Beato e Marvila, a crescer; na multiculturalidade que atravessa Alfama e se prologa por Arroios e pela Penha de França; no fervilhar de turistas entre o Cais de Sodré, Santos e o Príncipe Real, engolindo o Bairro Alto e as encostas que confluem no vale da Avenida da Liberdade; nos novos e velhos ricos que tomaram conta de Santa Maria Maior, de Santo António, e da Estrela; dos franceses que adotaram Campo de Ourique e Amoreiras; nas tradicionais e recentes formas de vida e atrações de Belém, Restelo e Ajuda. Depois há um anel de bairros e ligações aos municípios circundantes que dificilmente se limitam por linhas de fronteira, mas esquecidos do circo urbano que tomou conta da alma da cidade.

As almas raramente se quedam sem uma voz audível. Há doces e amargos langores, sístoles e diástoles nutridas pelas dimensões identificáveis, sejam em comprimento, largura e profundidade, seja profundamente em tempo, lugar, temperatura, odor, tato, sonoras revelações e indescritíveis sabores. As almas e os corpos, para poderem ter rosto e nome, precisam de ter os braços, as cabeças, as pernas, todas as partes, ligadas por fios visíveis e invisíveis, que lhe dão sentido e nome.

Se digo João, Maria, conto uma história que respeita a alguém em particular, à sua viagem na terra habitada.

Se digo Lisboa, qual o nome que posso dar à sua alma? Há uma ganga de veículos floridos a calcorrear incessantes as colinas da cidade histórica, há cafés, bares, hotéis, lounges, esplanadas, restaurantes, bistrôs, lojas de souvenirs, lojas chiques, lojas trendy, lojas retro, e coisas assim, viradas para uma ideia chamada mercado.

O mercado tomou conta de Lisboa, deu-lhe movimento, deu-lhe dinheiro, deu-lhe novas construções e reabilitação urbana, deu-lhe gente que vem de todo o lado e vai, gente que fica, outras histórias de vida.

O mercado tirou de Lisboa muitos milhares de velhos e novos que contra a sua vontade tiveram de emigrar do coração de Lisboa para o Berreiro, Almada, Seixal, Odivelas, Amadora, Loures, Vila Franca de Xira, ou para outras partes de Portugal ou estrangeiro. Por não poderem pagar rendas, por não poderem comprar a casa onde a família habitava há gerações. O mercado tirou livrarias, lojas de bairro, formas de vida. A cidade é hoje, apesar de, materialmente, mais rica, menos inclusiva, pouco amiga das classes com poucos rendimentos. É, de forma crescente, uma cidade sem gente a viver no centro, sem capacidade de se olhar e ser olhada de forma coerente. É uma espécie de grande bazar, ao qual falta a malha que o contextualiza.

Ao contrário de outras cidades europeias com alto pendor turístico, Lisboa quase não tem capacidade de gestão do parque habitacional. Em Amsterdão, por exemplo, 55% do parque habitacional é de gestão pública, ao contrário dos 3% de Lisboa. Em Lisboa, o parque habitacional público é orientado para habitação social, sendo mesmo aí insuficiente. Quando, como no caso de Amesterdão, se tem uma escala significativa de habitação pública, ganha-se capacidade de colocar no mercado casas a preços controlados para a classe média e o poder de estabelecer uma política de habitação. Esta política é fundamental para a construção e proteção da alma da cidade, pois uma cidade é o lugar dos cidadãos.

Sendo o rendimento médio português inferior a 1000 euros brutos/mês e sendo as rendas praticadas em Lisboa, em média, superiores a 600 euros/mês, chegando a facilmente a 1000 euros/mês por 100m2 em muitas zonas da cidade, como pode uma família de quatro pessoas com um rendimento médio de 1200 euros líquidos por mês organizar a sua vida? Quando o preço dos bens essenciais, nos supermercados de Lisboa, facilmente ultrapassam o preço dos mesmos bens em supermercados equivalentes em Paris, Madrid ou Londres? Quando o acesso à saúde pública é cada vez mais limitado e o preço das consultas de médicos especialistas é superior à média europeia? Quando o preço dos combustíveis também?

Mercado...

O mercado é um motor essencial de desenvolvimento e criação de riqueza. Todavia, o mercado precisa de regulação e que a criação de riqueza, para garantir a justiça social, seja associada, por um lado, a incentivos para esse efeito e por outro, a mecanismos de redistribuição.

Lisboa é um exemplo, atualmente, do falhanço do encontro entre políticas de mercado e políticas sociais. Curiosamente, foi a governação socialista do município que deu o grande salto de transformação mercantilista da cidade - de 2007 a 2021, com António Costa e Fernando Medina. A entrega da cidade ao turismo, sendo uma oportunidade, foi quase uma espécie de rendição incondicional.

Ora o turismo é só mais uma forma de mercado. Gerar oferta para uma procura. O turismo cumpre uma função relevante face às tendências dos mercados globais mas não é criador de almas, apesar de ser um vampiro de narrativas. Por essa via, pode ser um movimento predatório e homicida. O turismo está não só a monotematizar as funções económicas, sociais e culturais da cidade e esvaziar a cidade da classe média e classe média baixa, como a promover uma gentrificação perigosa para o futuro. O que acontecerá a Lisboa se o turismo faltar? Uma verdadeira metrópole é diversificada nas funções, nas ofertas, nas características da sua população.

Lisboa transformou-se de forma extraordinária nos últimos trinta anos. E não é preciso ser nostálgico. É bom não esquecer, antes, a Baixa sem vida, os edifícios em ruínas, a frente de rio inacessível, a pobreza. Mas o shot de turismo, de empresas que se instalam, de atração cosmopolita está a esvair a cidade no banquete mercantil. É preciso uma ideia de cidade para lá do mercado. Uma alma que concorde com a história e insufle o oxigénio contemporâneo de uma vida inclusiva, plural, regenerativa e centrada nas pessoas.

Lisboa precisa de ser território acolhedor para todos os que o habitam e não só para as classes endinheiradas ou para turistas. Espero que não nos transformemos num modelo social em que uma casta vive a cidade maravilhosa, outra, é um grupo de voyeurs e aspirantes à vida dos ricos, e um exército de servidores que trabalham 12 horas por dia, entre os transportes públicos, o salário mínimo e a impossibilidade de fruir o que a cidade tem/pode oferecer. Mas somos cada vez mais essa cidade.

Quando as pessoas que caracterizam e dão alma a um lugar se ausentam, onde está a cidade e o seu nome? Fica só o cenário físico da urbanidade, agora, gerido por experimentados criadores de emoções. Pagas, claro

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