1 Fartos das palavras quando elas não funcionam. Voltaram a não funcionar e lá vamos nós outra vez, unidos nas condolências, unânimes na condenação, em uníssono nos diagnósticos. Ficam irritantemente banais, as palavras que nestes momentos lamentam, condenam, tiram conclusões morais, lições fúteis, ilações políticas, alertas sociais, os riscos civilizacionais..Lá vamos nós outra vez, gritar que o rei vai nu, que a Europa já era, que a União é a primeira vítima e o próprio islão a segunda, que ceder ao medo é entregar o triunfo ao terrorismo, que é o ataque ao nosso modo de vida e é a liberdade que nos querem tirar. E lá vamos anunciar a mais do que certa ascensão da extrema-direita, avisar para o que isso significa de radicalização e intolerância, da aversão ao estrangeiro e sobretudo rejeição ao muçulmano..Lá vamos nós enchermo-nos de coragem e vociferar contra os nossos políticos, que não fazem nada naquelas cimeiras tão vazias e inconsequentes, repetitivas como estes textos que se escrevem, tão fugazes e bem-intencionadas quanto as flores depositadas nos lugares das últimas tragédias. Últimas no sentido das mais recentes, não por não se voltarem a repetir..Porque se repetem. E bum! Mais um bombista suicida, a explosão que deixa um zumbido nas cabeças, vítimas inocentes, porque afinal em estórias com culpados há evidentemente inocentes. E lá vamos nós, todos representados nos chefes de Estado - são os dias em que deixamos que nos representem - a desfilar de braços dados e a cantar a Marselhesa..Até convocarem nova cimeira para resolver o problema, e depois não resolvem, e depois rebenta outra bomba, mais um estremunhar de Kalashnikov e... e cito Carla Hilário Quevedo, que não conheço, mas assim escreve com igual irritação e sentimento de impotência: "Desde 2001 que o mundo livre fala sobre as causas do terrorismo, sobre as culpas do Ocidente, sobre o ódio que os terroristas têm ao nosso modo de vida. As causas deixaram há muito de me interessar. Vejo qualquer explicação como um ato de cobardia.".Recuando ao 11 de Setembro, o dia em que supostamente o mundo mudou, a história é afinal mais ou menos a mesma, que acabamos por assistir em repetição - "há 15 anos que a barbárie vence a civilização: Nova Iorque, 2001; Madrid, 2004; Londres, 2005; Paris, 2015", seleciona Quevedo no seu artigo de ontem no i, as cidades, só as nossas, para concluir: "Sim, o terrorismo venceu.".2 E todos assistimos. Ficamos mais conscientes e mais despertos - que, neste caso, significa o contrário de espertos. Não é lá muito inteligente a raça humana. Embora fale bem, quase sempre da forma politicamente correta: "A palavra é o mais belo que criámos, o mais importante que temos, a palavra é o que nos salva", escreveu o líder socialista espanhol no jornal El País..Não se pode dizer isto às famílias das vítimas desta sexta-feira à noite em Paris. Não é isto que quero ouvir, depois de tantas palavras, tantos textos e tantos mortos. Não eram necessários mais centena e meia para saber que a Europa se esfrangalhou, que as fronteiras vão ser reerguidas, que os muros já estavam em construção, que o medo se instalara - e não quando nos matavam, mas quando morriam à nossa porta ou chegavam já cadáver às nossas praias..Não era necessário o massacre do Bataclan, que antes era nome de "bar da luz vermelha", onde Jorge Amado instalava as suas quengas, e agora é pretexto para energúmenos relacionarem terroristas e refugiados..Não havia necessidade, mas "reações primárias" de gente como o primeiro-ministro esloveno não são de hoje, nem foi neste fim de semana que a Leste começaram a estalar como pipocas "líderes" nacionalistas que, desta forma e na primeira oportunidade, retribuem assim a solidariedade à Europa que os "resgatou" da debacle do comunismo soviético..Não somos todos Charlie, mas somos primários quando os culpamos para nos desculparmos. Não deveria ser necessário, mas é preciso o sobressalto de uma Kalashnikov a irromper numa redação de boémios cartoonistas, ou numa sala de espetáculos repleta de jovens, para evocar Obama, Bush, Barroso, Juncker, Hollande, Cameron, e condená-los por crime de inação. Sim, porque negligentes somos todos os que se revoltam até ao próximo atentado, onde não faltarão mais palavras, as mesmas palavras, e a denúncia numa crónica de opinião..3 Conheço-os a todos e não lhes guardei os nomes. Mas são culpados e assim os declaro. Culpados pelos mortos. Culpados pelos que não tendo morrido vivem entre o pânico e o pavor, a miséria e a devastação. São insuspeitos, funcionários humanitários, trabalham (e ganham bem por isso) em campos de refugiados, na mais recôndita e inóspita África. Vi-os e não queria acreditar que eram os primeiros a boicotar programas que promoviam a autonomia financeira e emancipação social dos habitantes do campo. Vi Guterres a lutar contra isso, porque a "máquina" do ACNUR mais não estava do que a tratar da sua própria sobrevivência - e ela só se garante havendo refugiados e dependentes da dádiva..Lembrei-me deles, por causa dos atentados, do esloveno, dos terroristas e dos refugiados sírios. E do novo governo polaco, outro que tal, que já veio dizer que não há condições políticas para aplicar os acordos de quotas na distribuição de 160 mil refugiados pelos países da União. Dois meses depois, apenas 147 (!!!) foram recolocados..Em Portugal, há três letras para explicar tamanha desolação: SEF. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras boicota a entrada dos "nossos" refugiados. Não é desleixo nem zelo burocrata. É bloqueio ativo. O sistema não é posto em xeque apenas em situações extremas, como o terrorismo. A corrosão é sistemática e silenciosa. Os eslovenos são é mais sinceros. Nestes dias de chumbo, uns falam o que pensam, outros fazem-no pela calada. Não há palavras para os descrever.