Sedutora vertigem americana de Clara Ferreira Alves

'Cenas da Vida Americana' é assim como um dicionário dos últimos presidentes dos Estados Unidos, com muitos verbetes vivenciados sobre o estilo de vida daquele continente.
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A coleção de textos reunidos sob o título Cenas da Vida Americana - de Reagan a Trump aparece sob a capa de um tão maravilhoso quanto vulgarizado quadro de Edward Hopper. É o ponto de partida para Clara Ferreira Alves viajar umas quantas vezes pela América, aquela sobre a qual escreveu em várias alturas após a sua visitação. Na badana coloca a única informação sobre a fonte destas histórias: "Com o passar dos anos fui escrevendo sobre a América." Acrescenta que só "ao reler os textos reunidos neste livro, me dei conta de que me interesso demasiado pelos Estados Unidos, pela gente, pela paisagem, pela política, pela inteligência e pela tacanhez. Pela grandeza e perversidade."

Voltemos ao quadro de Hopper. Belo e repetidamente divulgado, não deixa de ser uma boa entrada para um volume de quatrocentas e algumas páginas que faz um retrato americano, principalmente num tempo em que há nojo em falar daquele país que a autora comenta devido ao seu estado de degradação política. O texto Hopericano é muito bom e abre o apetite para esta viagem por um país continente - irá falar mais à frente de que ao entrar-se nos EUA sente-se essa dimensão geográfica, coisa que não acontece na Europa -, e logo situa o tempo escolhido para estes relatos se entrelaçarem: a América a partir da II Guerra Mundial. Ou seja, uma América que até ao "avatar" Trump tem uma coligação de presidentes que a unem como se fosse o Grande Romance Americano.

Em muito focado no protagonismo presidencial, designadamente em Reagan e sucessores, os textos resultam de publicações pós 1986 e até ao ano passado. Também com muita análise política e social, até financeira porque a isso Bill Clinton se teve de dedicar, a narrativa não se esvai nessas fronteiras. Afinal, a autora gosta de cultura e isso é coisa que não falta. É claro que a entrada hopperiana mostra um tom desde o início, sendo reforçada em referências constantes. Desde o poder de certas revistas até ao teatro mais marginal e experimentalista, passando pelo New York Times vendido ao quilo - nos tempos em que a versão online não existia - e a própria televisão, a que sempre reserva um olhar particular.

Este Cenas está repleto de pormenores e sente-se que o olhar do repórter estava atento aos detalhes que fazem os intervalos entre as partes mais importantes. Como é o caso do capítulo Crónicas Americanas, onde várias vozes enquadram o país. Ou a campanha Obsession em Nova Iorque Fim de Estação, uma das melhores descrições das elites de Manhattan - "uma ilha rodeada de cidade por todos os lados". Há capítulos pequenos como Os "Merdia" que executam o segundo Presidente Bush, bem como no que se segue sobre a guerra no Iraque e a vontade da América liberal em retirar George W. do comando. E existe uma paixão por Obama, o homem que "não era um "presidenciável", era um Presidente", que fazia "discursos arrebatadores" e que interpretava "uma nova forma de fazer política e uma nova maneira de fazer política". Tal como existia um prazer ao ler-se sobre Bill Clinton páginas atrás, bem visível em A Malta do Swatch na Casa Branca, que define assim: "Ele é o que o português designaria, suave, como "um gajo porreiro"". E o atual Presidente...

Ao iniciar-se o livro poderia imaginar-se uma viagem como a que Bernard-Henry Levy fez no seu Vertigem Americana. Não é isso que acontece, nem persegue Tocqueville, antes caminha pianinho atrás de Clara Ferreira Alves.

Cenas da Vida Americana

Clara Ferreira Alves

Editora Clube do Autor

441 páginas

PVP: 18,50 euros

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