Estamos a assistir a cortes salariais nos salários dos futebolistas em várias ligas europeias. Em Portugal já algum jogador reportou uma situação dessas? Não. Nem faz qualquer sentido tomar decisões isoladas. Eu estou a acompanhar o panorama internacional porque sou membro da board da FIFPRO, que representa os jogadores em todo o mundo e que está em contacto com a FIFA, a UEFA, as Ligas Europeias e a ECA. Em Portugal foi criado um grupo de trabalho mais alargado para definir uma estratégia nacional. O Fernando Gomes juntou a Federação, a Liga, o Sindicato dos Jogadores, os treinadores e os árbitros para tratar de questões laborais. Dito isto, nem a nível internacional nem a nível nacional há uma posição concertada. Há vários cenários, medidas propostas, mas de forma isolada. São medidas avulsas e têm que ver com a especificidade de cada país..Mas já houve incumprimentos salariais por parte de alguns clubes? Em Portugal, como nos outros países onde foi decretado o estado de emergência, as normas que daí decorrem sobrepõem-se às leis normais. Há um diploma que prevê medidas excecionais para o lay-off em situação de crise e que podem e devem ser usadas pelos clubes. A verdade é que os clubes neste momento não preenchem esses requisitos porque o impacto do vírus ainda não afetou as competições do ponto de vista estrutural, nem pôs em causa o cumprimento das obrigações. Em Portugal, os casos de incumprimento conhecidos são o do Desportivo das Aves e do Boavista, que chumbaram no controlo de 15 de março e foram interpelados pela Liga para regularizarem a situação, mas que não têm nada que ver com a pandemia. No caso do Boavista, tem que ver com um problema histórico, e no do Desp. Aves é um problema de má gestão. A justificação que o Desportivo das Aves deu ao associar o incumprimento de salários ao covid-19 é um ato criminoso. Não é aceitável. É de alguém que se está a aproveitar da situação de emergência para benefício próprio. O clube podia e devia cumprir com as suas obrigações..E se esta situação se mantiver até maio ou junho, sem campeonatos e, por isso, sem receitas para os clubes? Se a situação se mantiver, admito que pode haver um dano considerável nas finanças dos clubes portugueses. O impacto pode ser severo e aí temos de encontrar soluções. Procurar colocar os salários na ordem do dia é uma falsa questão na medida em que ainda não é legítimo colocar esse problema no futebol português. O que é desejável é que seja definido um plano a nível internacional, uma regra que balize e se aplique a todos sob pena de se criar uma enorme confusão em que cada clube e cada país vai fazer o que quer. Estamos a procurar encontrar um conjunto de medidas que acautelem a competição, seja ao nível do calendário, seja ao nível dos contratos, seja ao nível das cedências, seja ao nível da janela de transferências. Procurar balizar isso para minimizar danos. Impõe-se haver diálogo sério e responsável e medidas concertadas. Não pode ser de outra maneira. Esta ideia de que um clube acha que pode utilizar esta conjuntura em benefício próprio não é aceitável, nem pode ser permitida pelos agentes desportivos. E vai haver clubes a colocar-se nessa posição, não tenhamos ilusões..Isso quer dizer que os jogadores estão disponíveis para aceitar cortes nos salários? Os jogadores estão muito serenos e conscientes do impacto que isto poderá vir a ter no futebol e estamos disponíveis para fazer cedências e sacrifícios necessários em defesa do futebol. Agora, isto tem é de ser feito de forma honesta, séria e partilhada. Criei dois grupos de trabalho, um com os capitães da I Liga e outro com os capitães da II Liga, e todos têm demonstrado um comportamento exemplar ao nível da cidadania. Primeiro está o homem, depois o jogador. No geral, eles têm partilhado mensagens inspiradoras para os demais e cumprido do ponto de vista laboral com todas as orientações das suas entidades patronais. O sindicato criou um gabinete de crise com os nossos advogados para, sem paternalismos, analisarmos o que é melhor conforme as circunstâncias. Se nos mostrarem que a salvação do futebol português são os cortes nos salários dos jogadores, nós estamos disponíveis, agora não venham impor-nos medidas abusivas. Espero é que não haja meia dúzia de clubes a colocarem-se na posição indecente de querer despedir ou reduzir salários só porque sim..Admite que a solução possa passar por um desemprego temporário, como fez a Bélgica? Não, neste momento nem se justifica. E não podemos cair no erro de pegar em medidas que estão a ser tomadas em outros países e aplicá-las cá. São realidades diferentes, quer do ponto de vista económico quer do ponto de vista desportivo e até da evolução da pandemia. A atividade desportiva deve inserir-se no demais conjunto de atividades do país, e portanto deve comportar-se de igual maneira, não deve ser excecional e temos de encarar o futuro de forma realista. Isto vai doer a todos, mas sobretudo aos portugueses em geral, aos mais carenciados. Essa deve ser a nossa prioridade. Há classes mais desfavorecidas que devem merecer a prioridade e ter o esforço maior do Estado. Não podemos criar alarmismos. Se há atividade que tem capacidade para superar isto é o futebol profissional, que tem de saber dar resposta aos desafios sem se vitimizar..Um pouco à imagem do que fez o governo... Ajudar só quem não despedir? Claro. A medida que o governo adotou de que só deve ser ajudado quem não despedir é uma boa medida. Não podemos dar dinheiro a um clube que se comporta como o Desportivo das Aves, que pensa que nos engana a todos. Nos campeonatos não profissionais o cenário ainda é mais grave. Temos um conjunto de dirigentes que andaram a ter mais olhos do que barriga, trouxeram dez a 15 jogadores em condições desumanas a ver se ganhavam dinheiro à custa deles, não lhes pagavam com a desculpa de serem amadores e agora estão a querer que o Estado e as instituições desportivas os salvem. Isto não é aceitável. Temos de responder aos problemas dos jogadores em circunstâncias difíceis, mas não aceito que se dê dinheiro a clubes que nada fizeram pelo futebol português e cujos dirigentes estão no futebol para se beneficiarem a eles próprios. Acho que este é um bom momento para se fazer uma limpeza e afastar o que está a mais no futebol português..Mas como se faz essa triagem? É fácil, em face do cumprimento das obrigações. Há regras e reguladores. A Liga regula o futebol profissional. Os clubes apresentaram orçamentos no início da época em função de vários pressupostos, o que temos de verificar é o que falhou para não cumprirem. No futebol não profissional, a mesma coisa. Ver quem não está a cumprir. Quem assume a responsabilidade e não quem só sabe estender a mão para receber. Há que estabelecer critérios para não estarmos a alimentar pessoas que não estão a ajudar a resolver o problema..Nas conversas que tem mantido com os jogadores, sente alguma ansiedade por voltarem a poder jogar? Os jogadores são cidadãos como os demais. Admito que haja alguns mais destemidos e mais corajosos que o queiram fazer, mas ao mesmo tempo têm consciência de que têm filhos, pais, avós, amigos... O risco não é só deles. Se fosse só por eles, a maioria iria jogar já amanhã se lhes pedissem, agora, quando se coloca em cima da mesa o que está em causa, esse sentimento muda. A obrigação deles é protegerem-se a eles e aos outros. Ir treinar ou ir jogar é irresponsável no atual cenário de pandemia, ilegal mesmo. Estamos todos com vontade de voltar à competição, o jogador tal como eu quer voltar à normalidade o mais rapidamente possível, mas isso só vai acontecer quando o governo e as autoridades de saúde derem luz verde. Antes disso, é criar expectativas que podem sair furadas. Podemos trabalhar em cenários e esse é o dever das instituições, mas sem criar falsas expectativas quanto ao regresso. As instituições com que tenho falado, bem como os principais clubes, estão conscientes de que só é possível retomar a competição quando houver luz verde do governo. Olhamos para o que se passa em Itália e Espanha e ficamos desgastados emocionalmente. E o regresso vai ser muito difícil. Devemos aproveitar esta paragem para olhar para dentro e adotar outros comportamentos na vida e no desporto. O futebol tem uma dimensão tremenda e precisa do ajustamento necessário....O futebol português estava em ebulição antes de ser obrigado a parar por causa desta pandemia. Acredita que toda esta situação vai contribuir para uma nova consciência? O futebol precisa de se reabilitar e tem agora uma excelente oportunidade para isso. Estava sob fogo constante, mas também se pôs a jeito. Esta é uma oportunidade para nos reabilitarmos como setor de atividade. É preciso unir esforços e passar uma imagem de união à sociedade. Neste momento, o futebol também faz a diferença, é preciso reconhecer-lhe esse papel. São inúmeros os casos de jogadores, treinadores, clubes, seleções a contribuir com mensagens e até financeiramente para ajudar no combate ao coronavírus, mas é preciso que essa solidariedade sirva para reabilitar consciências e ganhar credibilidade junto da sociedade. O futebol precisa de unir-se no sentido de ser respeitado. Se o futebol recuperar a sua credibilidade, o governo olhará para nós de outra maneira, reconhecendo o nosso papel social e cultural.Os campeonatos pararam no momento certo? A verdade é que no caso português não são conhecidos jogadores infetados, como se vê no resto da Europa... Vamos por partes. Faço um elogio a António Costa. Independentemente das ideologias políticas, o primeiro-ministro está a desempenhar um papel de líder num momento de crise nunca visto. Dá-nos tranquilidade, tem sentido de Estado, tem sido pragmático. Podia ter corrido muito mal se António Costa não estivesse a liderar o país. A primeira palavra é para ele. Depois, o desporto fez o que tinha de fazer. Foi nos grupos de trabalho que criei com os jogadores que a questão se colocou. Fomos nós que em nome dos jogadores solicitámos à Federação e à Liga que suspendessem os campeonatos. Os jogadores entendiam que não havia condições para jogar. Depois de ter conhecimento do primeiro jogador infetado (Rugani, da Juventus), coloquei a questão aos jogadores, que, de forma unânime, acharam que o melhor era parar. Na manhã seguinte, reuni-me com o Pedro Proença e com o Fernando Gomes, e em conjunto tomámos a decisão. Não havia condições, era inevitável que isso acontecesse. Foi uma boa medida. Sei que os clubes mais importantes têm dado esse feedback à Liga.Acredita que ainda vamos ter futebol em Portugal nesta época? Já fui mais otimista, agora estou mais pessimista. Pensei que em maio poderíamos estar a competir, mas depois de ouvir os especialistas em saúde fico mais preocupado e acho que há o risco de esta época estar hipotecada. Eu, Joaquim Evangelista, desejo que seja o mais rápido possível. O futebol é fundamental para a saúde mental dos portugueses, é uma escapatória fabulosa e uma terapia eficaz.