Saúde e Segurança Nacional
A evolução da pandemia provocada pelo SARS-CoV-2 em Portugal teve altos e baixos, condicionados por um conjunto de fatores baseados na saúde pública e na qualidade da comunicação, que envolveram boas ou más decisões políticas em circunstâncias específicas. A máscara, a vacinação e a responsabilidade dos cidadãos consolidaram a nossa posição confortável a nível internacional.
A resposta prosseguida pelas autoridades nacionais obrigou à mobilização substancial das mais diversas instâncias do Estado e quadrantes da sociedade portuguesa. Esta abordagem abrangente foi-se desdobrando por várias ações, incluindo as declarações do estado de emergência e a implementação de medidas de carácter excecional, bem como o processo logístico de administração da vacinação a toda a população, que importa aqui sublinhar, porquanto o sucesso da vacinação desempenhou um "papel central na preservação de vidas humanas, na contenção da pandemia, na proteção dos sistemas de saúde e no restabelecimento da economia e da vida social" (Task Force).
Neste momento, estamos numa fase de transição em que a pandemia, a breve prazo, dará lugar de forma tranquila a uma endemia que irá permanecer ao longo do tempo, abençoada pela qualidade de um clima estável, com uma temperatura acima da média quando olhamos para a Europa. E é durante esta Primavera da Liberdade, que já estamos a viver, que vai ocorrer o regresso pleno à dita normalidade com a abolição de todas as restrições, com destaque para a máscara que será a última restrição a cair.
Não obstante, é igualmente verdade que a atuação das autoridades portuguesas, sobretudo nas fases iniciais da atividade do vírus (incidência e transmissibilidade), foi reveladora de (pelo menos) três tendências que têm sido evidentes durante as situações de catástrofe que assolam o nosso País: alguma demora na deteção e identificação dos avisos e alertas precoces e consequente mobilização expedita dos meios necessários; a tendência da compartimentalização da gestão para enfrentar problemas transversais; e a ausência de um método que sistematize a organização governativa e interministerial no plano da condução político-estratégica de uma crise, circunstância que amplia o carácter informal do nosso modelo de gestão de crises. Ora nesta crise sanitária estas tendências só não tiveram mais consequências negativas devido à nossa habitual capacidade coletiva de improviso, de solidariedade e de humanismo, o que aparentemente se assume cada vez mais como uma genuína reserva estratégica.
Com efeito, esta pandemia serviu também para demonstrar que os organismos oficiais dependentes do Ministério da Saúde, como a Direção-Geral da Saúde, o Infarmed, o Conselho Nacional de Saúde Pública, o INSA, a ACSS e as Administrações Regionais de Saúde, não foram suficientes para garantir uma resposta global e antecipada aos enormes desafios que fomos tendo pela frente. A nível local, os profissionais de saúde deram uma resposta extraordinária, seja nos cuidados primários e saúde pública, seja nos hospitais, confrontando-se nos momentos mais críticos com dificuldades complexas, mas expectáveis. As reuniões do Infarmed e a Task Force para a vacinação são exemplos de estruturas institucionais que o executivo sentiu necessidade de criar para assegurar os processos consultivos e a coordenação da resposta interdepartamental. São estruturas sem precedente organizacional e sem operacionalização prévia, mas que foram preponderantes no panorama nacional.
Ficou também patente que o sistema de vigilância em saúde pública carecia de maior robustez e investimento, atendendo que se trata de um instrumento indispensável para a deteção precoce de riscos, surtos, epidemias ou outro tipo de emergências de saúde pública e de prevenção da sua entrada ou propagação em território português.
As autoridades de saúde reconhecem o potencial disruptivo das pandemias nos domínios social e económico que pode levar ao pré-colapso de sistemas e serviços essenciais. Não é surpreendente pois que as pandemias e os riscos sanitários se encontrem plasmados no atual Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) (RCM n.º 19/2013). No entanto, verificou-se que faltava desenvolver a componente estrutural e operacional associada à capacidade da resposta.
Nesta medida, a pandemia veio afirmar em definitivo o carácter denso e alargado do conceito de segurança, e cristalizou em Portugal a noção de que estas ameaças de cariz sanitário são transversais ao exercício pragmático dos nossos interesses económicos, tornando mais saliente a importância do nexo saúde pública - segurança como pilar fundamental do nosso bem-estar social.
Concluídos os processos de lições identificadas e aprendidas relacionadas com a crise sanitária que têm sido desencadeados nas diversas áreas do Estado, envolvidas na gestão pandémica, e numa altura em que o Ministério da Defesa Nacional (MDN) decidiu proceder à revisão do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN), cuja redação final deverá aguardar por uma reflexão e clarificação face à evolução da atual conjuntura internacional, seria importante que as opções fundamentais para o novo CEDN identifique como um dos vetores prioritários o desenvolvimento do domínio da saúde pública face às implicações que este tem para a nossa segurança nacional e resiliência enquanto sociedade. Estamos no âmbito do planeamento, da organização e da capacidade de incrementar o estado de prontidão da área da saúde para enfrentar o inédito e a imprevisibilidade.
Tal implicará por exemplo, reconhecer a área da saúde como um dos subsistemas da segurança nacional - a par da defesa nacional, segurança interna, proteção civil, entre outros; e rever a composição, organização e o funcionamento das estruturas que devem assegurar, numa lógica de coordenação e de aconselhamento sanitário/médico o acompanhamento da resposta interministerial integrada às emergências sanitárias e de saúde. A ausência de um órgão colegial que seja eficaz em contextos de elevada incerteza e imprevisibilidade, para além de constituir uma lacuna organizacional, pode afetar a tomada de decisão e a clareza necessária na comunicação pública nos momentos de elevada exigência, e gerar a perceção que as decisões são conjunturais.
O desafio que representou a gestão da crise sanitária e a formulação e a implementação de um plano de vacinação nacional, em plena crise pandémica, impõe que estas lições sejam devidamente aprendidas e incorporadas, de forma a não desperdiçar o capital de conhecimento adquirido pelos serviços e unidades da administração pública, quer os que integram o serviço nacional de saúde e sistema de saúde, quer os que se inserem nas áreas governativas da defesa e administração interna.
Miguel Guimarães é Bastonário da Ordem dos Médicos e Alexandre Pinho é auditor de Defesa Nacional)