Saudades de Beirute

Chloé Mazlo traz às salas uma história do fim dos dias de paz no Líbano. <em>Céus do Líbano</em> tem uma interpretação seguríssima de Alba Rohrwacher e é marcado por efeitos de animação. Esteve na seleção da Semana da Crítica da edição cancelada de Cannes 2020.
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Não é só na América que realizadores vindos da animação (como são os casos de Rob Minkoff ou Brad Bird) tentam a sua sorte na imagem real. No caso de Chloé Mazlo, franco-libanesa, anteriormente vencedora do César com a animação Les Petits Cailloux, "sorte" não é bem a palavra certa. Neste drama evocativo de imagem real tudo parece ser imaginado ao milímetro. Imaginado e não pensado, sempre com uma margem substancial para integrar processos de animação e de colagens plásticas - é comum termos planos em que os atores têm em fundo imagens de arquivo ou cenários à base da mais pura ilustração. Um filme então contaminado pelas artes da animação stop-motion e por efeitos de uma artificialidade que é sempre terna e feminina.

Em Sous le Ciel d"Alice conta-se a forma como a guerra civil em 1975 no Líbano afetou um casal apaixonado. Alice é suíça e veio para o Beirute para se livrar de uma vida aborrecida nas montanhas do seu país. A sua profissão é educadora infantil mas cedo se apaixona pelas ilustrações. O seu marido é um astrofísico chamado Joseph, que sonha lançar o primeiro foguetão libanês no espaço. Entre os dois parece haver um amor perfeito, um amor do qual nasce Mona, que num ápice se torna mulher e quer viver uma juventude livre. Esta vida familiar idílica é posta à prova quando os primeiros sinais de violência eclodem no país. A guerra, que poderia parecer passageira, torna-se quotidiano e Alice e Joseph têm dificuldades em sorrir....

Entre o risco de transparecer um certo risco pelo decorativo, o filme aguenta-se sempre numa fina linha entre o relato da mudança de um país e os afetos de uma memória de uma outra Beirute. Parece claro que se torna mais confortável à realizadora descrever o estado cor-de-rosa de uma época anterior aos conflitos e aí consegue pequenos achados visuais que convocam uma simpatia natural. Mais tarde, consegue também identificar sinais de uma derrota íntima daqueles que ousaram enfrentar o terror de um conflito sempre paredes-meias com o absurdo. E fá-lo com um outro tom: a segunda parte da narrativa perde a cor e os jogos cenográficos passam uma tristeza justa, mesmo quando às vezes se sinta uma certa indecisão dramática. Entre esses dois registos a nostalgia desta "beleza libanesa" é pudica. Pudica e orgulhosamente feminina - o imaginário plástico de Mazlo é de uma delicadeza fina, finíssima.

Quem poderia pensar, sobretudo pelas primeiras imagens, que o lado "animado" deste objeto tornasse tudo ligeirinho talvez se engane. Sai-se da sala com um amargo na boca: Céus do Líbano é um filme amargurado, nomeadamente porque começa por propor um acontecimento romântico que fazia sentido num mundo que já foi feliz. Esta cineasta estreante nas longas fez declaradamente um filme saudosista, um manifesto por um Líbano que pareceu perfeito e aí torna-se daqueles filmes que apetece guardar de mansinho no coração.

Elogio ainda para a protagonista, Alba Rohrwacher, a italiana de Virgem Prometida e Eu Sou o Amor, provavelmente o maior talento da sua geração. A atriz evita o efeito Amélie Poulain na sua personagem.

dnot@dn.pt

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