Saramago não queria ficar no Panteão

Cinquenta horas depois de morrer, o Nobel da língua portuguesa via cumprida a sua vontade de ter  o corpo cremado. Pelo céu de Lisboa desapareceu o fumo que saiu da chaminé do forno. Na terra da mesma cidade irão ser depositadas as suas cinzas. Com uma pedra em cima
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A vontade de José Saramago era clara: não queria ficar no Panteão Nacional. Mas tinha um segundo desejo que também era muito claro: queria que as suas cinzas ficassem num jardim de Lisboa.

Falta agora encontrar na geografia da sua Lisboa um jardim onde se possa enterrar as cinzas e sobre elas colocar uma pedra com o nome do homem que ali está, para que as pessoas, que o queiram fazer, possam cumprir um terceiro desejo seu: o de lá irem pôr uma flor de vez em quando.

Era esse o breve conjunto de vontades do Prémio Nobel para quando morresse e que agora a mulher, Pilar del Río, e o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, tentam satisfazer. Já foram pensados alguns jardins para executar a vontade do escritor, mas a decisão final só se verificará após os passos da despedida que ontem terminaram com a cremação.

Nem sempre foi esse o desejo de José Saramago, que, em Fevereiro de 2008, após deixar o hospital de Lanzarote, quase recuperado de uma pneumonia, equacionava a eternidade em Portugal ou na ilha onde vivia do seguinte modo: 'Eu tinha isso bastante claro e não sei o que entretanto sucederá porque posso alterar... Enfim, estou vivo e poderei modificar tudo aquilo que muito bem entender. Mas, tal como as coisas estão neste momento, em primeiro lugar quero que o meu corpo seja incinerado e em segundo lugar quero que as minhas cinzas sejam enterradas no jardim da minha casa em Lanzarote.'

Não se sabe o que terá feito José Saramago mudar a opinião, mas existem pelo menos duas hipóteses. A principal, a de 'o Zé ser um patriota', como afirmou ontem ao DN o fadista Carlos do Carmo. Outra, o facto de lhe ter sido cedida a Casa dos Bicos para ser sede da sua Fundação. Neste caso, uma surpresa como o próprio escritor referiu um dia: 'Poderia acreditar que viesse a receber o Nobel mas nunca imaginaria ter a sede na Casa dos Bicos.' Esta foi uma das últimas grandes alegrias de Saramago, conforme o próprio relatou durante visita pessoal às obras de reabilitação do edifício, que deverá abrir as portas ao público dentro de um ano.

Resta agora saber o que acontecerá à proposta subscrita por muitos de as cinzas serem depositadas no Panteão Nacional e que partiu de Mário Soares mal soube da morte do escritor: 'Devia ir para o Panteão Nacional.' Essa disponibilidade é sustentada pela maioria dos partidos políticos, que agora terão de decidir o que fazer através de procedimento da Assembleia da República, observando o desejo do escritor e família.

Se lamentar a morte e o choro são duas das emoções principais de um funeral, não foi bem essa a situação que aconteceu ontem no de José Saramago. É certo que no íntimo de cada uma das muitas centenas de pessoas presentes na cremação do escritor ambas as situações se verificaram, mas o sentimento que os dominava era mais o facto de terem ido ao Cemitério do Alto de São João despedir-se de quem, após o almoço, iria dar-lhes a possibilidade de ler um bom romance e ficar na sua companhia como até ontem.

Uma realidade quase certa porque quando, pelas 13.30, o corpo de José Saramago se transformou no fumo que começou a sair da chaminé do forno crematório, o que muitos leitores fizeram foi elevarem os seus romances - e eram muitos os livros e o título ao gosto de cada um - em homenagem a quem os escrevera. A melhor despedida, diga-se, para qualquer escritor!

Definitivamente, ninguém estava ali para se despedir de José Saramago, mas para dizer um até já. Nem a maioria dos políticos que só passaram pela Câmara de Lisboa e deixaram ao Partido Comunista Português e ao Bloco de Esquerda essa representação no cemitério. Mais de 20 mil pessoas tinham já passado em frente ao caixão no Salão Nobre da autarquia da capital, das quais muitas centenas subiram até ao Alto de São João para se juntar às outras centenas que o esperavam aí desde o meio da manhã.

Quando o carro funerário entrou no cemitério, após duas carrinhas repletas de coroas de flores estacionarem à porta do crematório, o caixão foi retirado do interior e levado em ombros. Sob muitas palmas e dezenas de cravos que eram atirados, o corpo de José Saramago chegou ao local onde, a partir daí, só a família, amigos e personalidades entraram.

Durante dez minutos, as palmas continuaram a fazer-se ouvir, até se silenciarem para Pilar del Río pronunciar as palavras de despedida. Em seguida, a bandeira nacional foi retirada do caixão e dobrada conforme o protocolo exige, debaixo de um silêncio que se eternizou por bastantes segundos. Foi então que as portas de vidro do crematório se abriram para que todos pudessem assistir à última viagem de José Saramago.

Eram 13.25 quando a filha Violante depositou o último beijo sobre a madeira e, em poucos segundos, o caixão com José Saramago percorreu o trilho por onde desapareceu. Estranhamente, se todos os presentes tentavam conter as lágrimas, os funcionários da funerária tiveram alguma dificuldade em o fazer e num deles o tremor da face impressionava.

Uma última salva de palmas percorreu o largo do cemitério e sobrepunha-se a uma palavra de ordem que se mantinha na boca de muitos: 'Saramago, a luta continua.' Uma luta como a de muitos que ali estavam para se despedir do escritor e que vieram de muitas partes de Portugal, como uma senhora que mora em Viseu e apanhara o autocarro das 06.00 da manhã para chegar a tempo. Do ramo de cravos que trouxera, para substituir a ausências dos amigos que não a puderam acompanhar nesta despedida, a mulher só ficou com uma flor porque, enquanto esperava, o nervoso obrigou-a a encher as mãos vazias que se estenderam.

As conversas que se ouviam mostravam como as pessoas são tão diferentes umas das outras, tal como são as personagem criadas por José Saramago nos seus romances. Igor, de 31 anos, vestia uma camisola vermelha - 'Não tinha uma preta!' - com as letras CCCP inscritas, e quando se lhe pergunta qual o livro que mais gosta do Nobel, desconcerta: 'Não li nenhum, mas vou começar a ler a partir de hoje.' A morte fez Saramago ganhar um novo leitor, que garante ser esta a forma de 'preservar a sua memória'.

Se este futuro leitor conhecia o autor de o ter visto em criança na Festa do Avante! por duas vezes, já o homem de idade que estivera na Câmara de Lisboa, com uma estrela pregada na boina e enrolado numa bandeira do PCP, fez questão de voltar a dar-se a conhecer ao homenagear o escritor assim vestido. Mesmo ali ao lado, um pai explicava ao filho coisas da política através dos romances de quem morrera, enquanto duas amigas desenvolviam uma teoria contra o cordão policial que as proibia de chegar mais perto: 'Ele era um homem do povo. Era nosso.' As vozes espanholas também eram bastantes; também falavam muito; também comentavam os livros e também relatavam tudo o que acontecia no largo do crematório. Enfim, estava povo em quantidade tal para que o funeral fique na memória colectiva.

Escritores também não faltaram. Mário de Carvalho não quis dizer as coisas do costume, apesar de serem verdadeiras, e valoriza o papel de José Saramago na divulgação da literatura portuguesa pelo mundo. Tenta comparar a outros nomes de outros séculos mas acaba por dizer que não há paralelo. 'Desapareceu o escritor de referência', conclui.

No fim, mais palmas para a família que abandona o cemitério. Agora são muitos mais porque os irmãos de Pilar del Río vieram também à despedida do cunhado.

São quase duas da tarde e o sol está no pino, dando um pouco mais de cor aos trajes típicos de dois campinos que vieram da Azambuja. Muitos dos que não viajaram de Lavre, de Mafra e de outros lugares que fizeram os cenários dos romances estiveram a ver o funeral pela televisão - e os mais novos online como diria o blogger Saramago. Estavam lá todos os canais e nunca se falou tanto de Saramago desde que o escritor ofereceu a Portugal o primeiro Prémio Nobel da sua língua.

Do meio do largo, a escritora Lídia Jorge teimava em não deixar José. Observa o crematório e diz: 'A saída do fumo arrepia e assusta-me.'

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