Saramago, um Nobel português

Ontem à tarde, José Saramago recebeu o Prémio Nobel da Literatura de 1998. O primeiro escrito em português
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Pompa, circunstância e marchas; condecorações, jóias e brilho; casacos, caudas e mantilhas; discursos, canções e hinos – foi muito solene a festa dos Nobel na Casa dos Concertos de Estocolmo, tal como estava previsto no rígido programa desta cerimónia. Mas como a perfeição é divina, e nunca humana, também houve ocasião para um atraso na hora do começo e uma hesitação real – afinal de contas, o rei da Suécia foi o único dos protagonistas que não participou no ensaio geral.

De facto, ontem, de manhã, os laureados e os apresentadores oficiais foram obrigados a fazer um cuidadoso ensaio da cerimónia. No próprio palco, ainda com as cadeiras vazias e sem orquestra. Os mestres de cerimónias ensinaram-lhes tudo, desde o protocolo ('quando o rei se levanta, ninguém fica sentado') à procissão de entrada e saída ou à utilização das duas mãos na recepção a medalha e do diploma (parece fácil, mas sempre 'faltam' ou 'sobram' mãos) ou até as vénias obrigatórias (o único que estava habituado a elas era o japonês…). Para nós, jornalistas, autorizados a assistir ao ensaio (mas sem fotos), foi divertidíssimo ver aqueles nove respeitáveis senhores a voltar ao tempo da escola ou da universidade, aprendendo como se comportar na 'Festa dos Finalistas'. Mas regra é regra e a Suécia, monarquia tradicional, ainda que democrática, cultiva aplicadamente os seus rituais.

O dia começou, então, com estas ironias e teria sido uma jornada alegra para todos nós, portugueses, se não estivéssemos manchados, no mínimo profundamente incomodados, pelas situação que, desde a véspera, tinha sido criada por um certo 'jornalista' de uma televisão privada portuguesa que se tem tornado conhecida (tristemente famosa) pelos atropelos que faz (por gosto? por estilo? por atitude política?) a todas as normas elementares de respeito pela dignidade humana. Concretamente: o discurso (a declaração formal) de José Saramago no banquete de ontem à noite, depois da cerimónia dos prémios, foi divulgado com óbvio embargo ao fim do dia de quarta-feira. Manda a ética jornalística mais básica que um embargo deve ser respeitado por todos os profissionais de informação, sempre que isso lhes é pedido. Mas, nestas coisas do profissionalismo, há sempre uns que se consideram 'superiores aos outros', 'imunes' às tais normas que devem reger as relações jornalistas/fontes/público.

Em suma, a tal criatura sem nome nem identidade (excepto no seu cadastro), aliás useira e vezeira na prática do insulto e do desrespeito pelos que devia considerar seus camaradas de profissão (mas saberá ela 'aquilo' que é camaradagem?), furou o embargo aceite por todos nós e divulgou o conteúdo do discurso de Saramago 24 horas antes do que tinha sido combinado.

Como é evidente, Saramago reagiu muito mal, cortou formalmente relações com a tal estação televisiva e ficou furioso com os jornalistas em geral – é este o preço, pesado, que nós, jornalistas a sério, pagamos sempre que alguém, fazendo de conta que também o é, mina o terreno por onde devemos caminhar. Esses profissionais da desinformação, sem espelho em casa nem vergonha na cara, possuem o condão de salpicar de lama todos os que estão à sua volta. Mais uma vez isso aconteceu, em Estocolmo com em Lisboa ou Carnaxide. Até quando?... Adiante.

Além dos jornalistas aqui em serviço, outros portugueses assistiram a esta cerimónia – o Presidente da República (ostentando a banda das três ordens) e a primeira dama (sobriamente vestida de cinzento), o ministro José Sócrates (em representação do primeiro-ministro e sentado ao lado da ministra da Cultura sueca), todos na primeira fila da plateia; mais atrás, Pilar, a mulher de José Saramago (vestido branco, rosa vermelha e leque nas mãos), a filha do nosso laureado, Violante, ao lado do casal Zeferino Coelho (o editor mais feliz do mundo), e também Maria Alzira Seixo e Baptista-Bastos.

Todos eles devem ter reparado que José Saramago era o único dos nove laureados que ostentava uma condecoração – as insígnias do grande colar da Ordem de Sant’Iago da Espada. Mas talvez não tenham visto os sapatos de verniz, impacientes, a marcar o ritmo de uma ou de outra melodia…

Como é da praxe destas cerimónias, o presidente da Fundação Nobel, prof. Benet Samuelsson, abriu a série de discurso, salientando que os laureados deram 'excepcionais contribuições em muitos campos importantes' e que, ontem mesmo, em Oslo, o Nobel da Paz tinha sido entregue a John Hume e a David Trimble pela sua contribuição para a solução do conflito na Irlanda do Norte.

Recordou, depois, que Alfred Nobel, ao desejar promover actividades que iriam beneficiar a humanidade, seleccionou três campos científicos (física, química e medicina), mas também a literatura e os esforços na promoção da paz. 'Muitos se perguntaram por que razão Nobel combinou literatura e ciência. Seria devido ao seu grande interesse pela literatura, bem documentado em muitos aspectos, ou porque percebesse a importância da literatura na capacidade das pessoas para se compreenderem a si mesmas e ao mundo à sua volta?'

No ano de 2001, o centésimo aniversário dos Prémios Nobel será assinalado com uma exposição do centenário, com uma focagem especial no conceito de criatividade, exemplificada pelos Nobel atribuídos durante esses cem anos. E se Isaac Newton pensava que tinha visto mais longe apenas porque se alçara aos ombros de gigantes, ao escolher os laureados deste ano foram identificados os 'gigantes' aos ombros dos quais se levantará a próxima geração de pioneiros.

As câmaras de TV também não mostraram a manifestação de iranianos, cá fora, à saída da sala de concertos, com archotes, palavras de ordem e cartazes onde se podia ler 'Parem as execuções e torturas no Irão', 'Condenamos o terrorismo do estado no Irão'.

Era a 'deixa' ideal para o tom do discurso de Saramago, algumas horas depois, no banquete em honra dos laureados.

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