Sara Tavares voltou e canta feliz como um puto atrás da bola
Quase deixámos de poder ouvir Sara Tavares. "Não queria fazer música, estava desmotivada, fiquei muito cansada com as tournées, não tinha vida. Sonhei muito com isto, fiz isto, e agora via-me do outro lado, a olhar para cá. Pensava que podia compor para outros, produzir, também vivi no campo, dois anos. Dar a cara tira muita energia, dares de ti, da tua vida verdadeira: sai-te mesmo da pele." Além disso, um tumor benigno que lhe apareceu (e depois reapareceu) no cérebro poderia ter-lhe roubado a voz. "Pensei que podia ser massagista, agricultora, tenho outros talentos. Houve uma parte quando estive doente em que havia a eventualidade de poder deixar de usar a fala. Podia sempre escrever, desenvolver a parte de compor."
Sara Tavares tem agora 39 anos. O país conheceu-a era ela uma miúda de 15 anos que vivia em Almada e queria ser como a Whitney Houston: "bonita, generosa, e rica". Foi a cantar uma música de Whitney que venceu o programa televisivo Chuva de Estrelas. Ri-se quando lhe lembramos esses adjetivos e fala da América, "única terra em que via os negros a serem bem-sucedidos. Olhava para aqui e só via o Eusébio, não havia outros negros na televisão." Sara, como quase toda a gente, demorou a chegar à sua pele. Agora que chegou, canta tudo isso num elétrico, feliz, urbano, e dançável Fitxadu, pelo qual esperámos oito anos. E quando, na Casa Independente, apareceu a dançar num concerto para amigos com Onda de Som, que abre o disco, dizia-se nervosa, pois havia quase um ano que não subia ao palco.
Em Fitxadu compôs, cantou e tocou com Paulo Flores, Toty Sa"Med , Loony Johnson, os ex-Buraka Som Sistema Kalaf Epalanga, João Pires, ou Conductor, ou o rapper Virgílio Varela; momentos em que, escreve no booklet do álbum, "andamos ali a correr como putos atrás da bola, e somos todos Eusébios e Pelés". Perguntamos-lhe o que é isso, e ela refere "aquelas fotografias das revistas de música" em que vemos Bob Marley ou Mick Jagger em plena sintonia com o seu público. E continua: "É aquela zona da alegria, do êxtase. Teres o som a passar por ti e passares a bola para outro, é um prazer indescritível."
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O que a fez regressar? "Sempre que vejo uma pessoa a passar num carro e a curtir a música." E, claro, depois existem as músicas, que, conta ela na sua voz muito calma, vão aparecendo. Sara agarra no telemóvel e mostra a aplicação Dictaphone. Passa por uma lista enorme onde vemos passar Coisas Bunitas, que faz parte do álbum. Paramos em janeiro de 2016 e Sara põe a tocar uma canção que fez com os rappers Beware Jack e Double (Virgílio Varela) e que não terminaram.
A música de uma Lisboa africana
Em tempos ela disse-se portuguesa, depois cabo-verdiana, e ainda afro-portuguesa; hoje, quando é preciso dizer de onde vem, Sara diz-se "lisboeta, com muito orgulho". Filha de cabo-verdianos, só conheceu o país depois de ter vencido o Chuva de Estrelas, e só então começaria a falar o crioulo (que já entendia) em que canta ao longo de quase todo o Fitxadu. "Acho que a pessoa ganha mais consciência da sua identidade nascendo num sítio como Lisboa do que às vezes nascendo no Mindelo, Luanda, ou Bissau, porque está tão adquirido ali." Não é por acaso que este seu álbum, muito mais do que Xinti (2009), é um reflexo dessa Lisboa que vai do seu centro até Galinheiras, Cova da Moura, ou Barreiro. "Tem muito dessa Lisboa, e eu quero conhecer mais. Há muitos quartinhos ali a pulsar música."
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Quando lhe perguntamos como vai evitar cair de novo numa espiral de tournées que lhe o tirem o tempo para viver, Sara explica que o panorama da chamada world music mudou: "Já não é uma descoberta. Agora estamos a viver um revival da música eletrónica, urbana. Acho que estamos mais em sintonia uns com os outros, porque eu senti-me discriminada quando estava a fazer o circuito da world music. Via-me sempre a dar palestras sobre a história da lusofonia, às vezes a cantar mornas, não porque me apetecia. Às vezes só me faltava ir fazer a cachupa e o bacalhau para servir no fim dos concertos."
Para trás ficou a miúda que queria ter nascido na América, e aquela que cantava mornas para se justificar. Sara Tavares nunca soou tanto a si própria. Na música que dá nome ao álbum, Fitxadu, canta em crioulo algo como "as coisas boas do mundo não têm corte, estão fechadas aqui no meu peito". "É uma coisa forte: abraço fitxadu. Aquela amizade que eu tenho por ti guarda fitxada." Diz-vos ela.