Um dos mais impetuosos militantes do PT, o ator José de Abreu, no seu meio raramente está sozinho: a maior parte dos artistas apoia, como ele, o partido de Lula da Silva, ou até partidos mais à esquerda, manifestou-se contra o impeachment de Dilma Rousseff e participou da campanha #elenão. Já na cidade onde nasceu, Santa Rita do Passa Quatro, 300 quilómetros a norte de São Paulo, no coração do agronegócio brasileiro, Abreu é um cavaleiro quase solitário. Mais de 80% dos santarritenses escolheram Jair Bolsonaro na eleição de outubro e vibraram com o discurso de posse do novo presidente, para quem "a bandeira do Brasil jamais será vermelha", a cor do PT.."Foi um boom incrível na nossa cidade a favor de Bolsonaro e dos deputados do PSL, o partido dele, e foi, em certa medida, uma surpresa para nós, porque nem ele nem esses deputados precisaram de vir cá fazer campanha", conta ao DN Patrícia Zamprogno, a correspondente da EPTV, filial da TV Globo, em Santa Rita. Se na terra de José de Abreu o capitão na reserva somou 82%, em Ribeirão Preto, maior centro urbano daquela região e capital do agronegócio nacional, ultrapassou os 72%. Em Barretos, cidade vizinha que hospeda o maior rodeo da América Latina, atingiu 77%, em Franca, capital do calçado, chegou a 75%. Um pouco mais a sul, em Saltinho, obteve um recorde de 89,2%, dos votos contra 10,8% do petista Fernando Haddad..Resumindo, Bolsonaro saiu vencedor em 97,8% dos municípios paulistas, isto é, 631 de 645 cidades, e recebeu no estado mais de um quarto dos votos totais nacionais. Em quase todas as localidades teria, aliás, ganho a eleição à primeira volta. Uma das exceções é São Paulo, a capital estadual, onde a devoção pelo candidato de extrema-direita não se revelou tão esmagadora - o que prova que o fenómeno Bolsonaro é, mais do que tudo, um fenómeno do interior..E porquê? "Porque ele soube falar ao brasileiro médio", diz o advogado de 25 anos Vinícius Seixas, acabado de chegar de Brasília onde aplaudiu, emocionado, o novo presidente. "Os jornalistas brasileiros erraram as suas projeções porque vivem nas suas bolhas metropolitanas, preocupados com problemas, como a homofobia, que não são nem de perto a principal preocupação do brasileiro médio, que é composto de pessoas comuns com problemas comuns", afirma o natural de Franca, a cerca de 400 quilómetros da cidade de São Paulo..OS COSTUMES."Enquanto os media e os políticos tradicionais abstratizaram demais a conversa, o único presidenciável que falou aquilo que nós queríamos falar foi Bolsonaro", continua Seixas. "Ao trocar o discurso pró-trabalhador pelo discurso pró-minorias, a esquerda não deu um tiro no pé, deu um tiro na própria cabeça"..Apesar de os brasileiros com maior nível de escolaridade terem optado por Bolsonaro, segundo as sondagens, Vinícius destaca que "o PT preferiu ouvir intelectuais, como [os filósofos] Márcia Tiburi ou Edir Sader, gente que não tem vivência prática, e esquecer o povo"..Para Gilvan Ribeiro, natural de Bauru, a cidade do interior de São Paulo (a 320 quilómetros) onde Pelé cresceu, o problema põe-se ao contrário. Opositor de Bolsonaro, o jornalista e escritor acha que "há uma indigência cultural incrível no estado". "Quer um exemplo?", pergunta, "no Natal resolvi ir ao cinema com o meu filho, das cinco salas disponíveis, quatro passavam o blockbuster Aquaman e a outra o infantil Mary Poppins, não há opção que nos leve à reflexão, some-se a isso um fundamentalismo religioso e temos o ambiente propício para figuras como Bolsonaro nadarem de braçada"..Bolsonaro, embora tenha sido eleito por 28 anos para o Congresso pelo colégio eleitoral do Rio de Janeiro, nasceu em Glicério, foi registado em Campinas e passou a infância e adolescência em Ribeira, Jundiaí, Sete Barras e Eldorado, todas cidades do interior paulista..O empresário do mercado financeiro Alexandre Gameiro, 46 anos, apoiou Bolsonaro apenas na segunda volta porque diverge dele nas questões dos costumes. "Mas embora não me conecte em questões de família e religião com Bolsonaro, acredito que na economia e na segurança vá fazer melhor, além disso, sou um liberal na economia e cansado das ideias económicas retrógradas da esquerda brasileira, por isso o apoiei", prossegue. Tão retrógradas, na opinião de Gameiro, que ele, natural de Ribeirão Preto, a 350 quilómetros de São Paulo, quando vivia nos Estados Unidos apoiou Barack Obama. "E aqui acabei apoiando Bolsonaro na segunda volta, entende?".A ECONOMIA.Tanto Gameiro como André Luís Rezende, empresário da área da comunicação, concordam que o governo Dilma Rousseff "ajudou" Bolsonaro. "A região sofreu muito com o governo Dilma, que acabou com o negócio da cana-de-açúcar, um dos fortes da região, mantendo os preços da gasolina baixos", lembra o primeiro. "O setor energético foi destroçado por ela, logo, todos os envolvidos na cadeia produtiva apoiaram candidatos à direita", acrescenta o segundo..Para Vinícius Seixas, a sua cidade, Franca, "é um polo calçadista e o calçado precisa do agronegócio, porque é feito de couro, que depende da indústria do couro, que por sua vez depende da indústria da carne, prejudicada pelo PT"..Gilvan Ribeiro diverge, novamente. "Acho que nas cidades de agronegócio o 'coronelismo' ainda predomina, a exploração do trabalhador rural e a submissão da população às famílias donas da região por gerações criam um ciclo vicioso, porque as pessoas humildes têm medo de contrariar patrões, sob pena de serem expulsos da terra ou acabar marginalizados."."A cultura de escravidão é uma chave para entender este conservadorismo no interior", concorda Matheus Pichonelli, cientista social, nascido em Araraquara, a 300 quilómetros da capital estadual. "Os donos de fazendas, considerados deuses, mas não só eles têm uma lógica escravista, acham que o pobre é pobre porque não quer colher laranja e se quer ganhar mais é ingrato.".Para Gilvan, "há sim heranças claras da escravidão, traduzidas na ideia de que as empregadas domésticas não devem ter direitos laborais e em que a ascensão social dos negros ainda é vista como uma subversão da velha ordem"..A CORRUPÇÃO.A corrupção dos governos do PT, porém, deitou tudo a perder na esquerda - todos concordam. "O povo viu Bolsonaro como uma salvação contra a corrupção", diz Gameiro..Para Rezende, natural de Ribeirão Preto, "o principal motivo para que a região votasse em peso em Bolsonaro foi a indignação com os governos do PT que lideraram o maior escândalo de corrupção e desvio de dinheiro público da história mundial". "O facto é que a grande maioria da população nem é de esquerda nem de direita", afirma ele, "não quer é mais roubalheira de dinheiro público"..Rafael Riul, também de Ribeirão Preto, votou em Bolsonaro porque acredita que o novo presidente "atuará no combate à corrupção, a mãe de todas as mazelas do país, como fome, saúde pública precária, insegurança, violência". "Mas tenho a consciência de que os conchavos continuarão e de que o sistema continuará de pé, razão por que devemos continuar fiscalizando e porque já não estou de acordo com algumas nomeações de ministros", defende o advogado de 40 anos. "Quais ministros? Aqueles envolvidos em questões judiciais cuja prisão, se forem culpados, exigirei".."Bolsonaro é um santo? Não. Já falou suas besteiras? Sim. Mas é merecedor dessa oportunidade, seria um tapa na cara dos brasileiros de bem, que trabalham e pagam seus impostos, o regresso da esquerda corrupta ao poder", acrescenta, por sua vez, Rezende. Para o empresário, "os brasileiros estão cansados da bandidagem e reagiram elegendo Bolsonaro, em quem viram uma esperança, se a escolha foi certa ou errada, o futuro dirá, se ele sair da linha vai cair na mesma velocidade que subiu"..No fundo, a maioria dos paulistas acha que o estado onde vivem "votou certo". "Sem se deixar enganar, como os nordestinos, que acreditam nas propagandas a dizer que Bolsonaro vai acabar com o bolsa-família", diz Vinícius Seixas..Na rede social Twitter, entretanto, uma publicação recente a esse propósito gerou demorada controvérsia: "Os paulistas é que são puros? Isso é muito racismo contra os nordestinos." O autor, claro, foi o polémico ator José de Abreu, um cavaleiro quase solitário no seu estado Natal.