Estávamos em 1983, e foi a uma Vila Nova de Mil Fontes ainda longe das enchentes do século XXI que Ivica Maricic chegou numa noite de verão mal iluminada. Confiante nos seus conhecimentos de espanhol e italiano, e nas aulas de latim, o croata escolheu uma tasca para o jantar. Mas o menu, todo em português e escrito à mão, foi um verdadeiro desafio. "Ia pedindo pratos de carne e peixe, sem saber bem o que era. Mas depois vi uma coisa chamada "Verdes". Convencido que devia ser um acompanhamento, pedi dois diferentes e uma garrafa de vinho tinto. O empregado, olhou para nós com uma ar estranho mas lá foi e voltou com... uma garrafa de vinho tinto e duas de vinho verde!".A anedota é contada por Ivic Maricic, antigo embaixador da Croácia em Lisboa e autodidata na sua aprendizagem do português. Mas as dificuldades que encontrou nos primeiros contactos com a nossa língua não diferem muito das que outros estrangeiros sentiram. Seja o francês Laurent Goater, a finlandesa Katriina Pirnes, o indiano Shiv Singh, a americana Eileen McDonough ou a sul-coreana Jin Sun Lee..Para Maricic, o primeiro contacto com a língua portuguesa chegou através da música. Primeiro a brasileira - "mas é bastante diferente, o som é diferente", como explica numa conversa telefónica a partir do seu isolamento em Cascais. Depois, graças aos fados de Amália, que ouvia quando era um jovem estudante de Arquitetura em Zagreb, em finais dos anos 70, início dos anos 80. "Ainda antes da revolução do 25 de abril de 1974, lembro-me de ver um documentário na televisão da então Jugoslávia sobre Portugal. Falavam muito mal do país, do regime de Salazar, mas lembro-me das imagens de Sintra, de Lisboa. Pareceu-me muito interessante. Diferente de tudo o que tinha visto na Europa", conta..E foi na tal viagem em 1983, que o levou a percorrer a Europa num Citroën 2CV que se apaixonou por Portugal. "Viajámos pela Europa toda, vínhamos de Espanha, de Sevilha, e entrámos no Alentejo. Uma calma, uma serenidade depois da confusão de Sevilha, parecia outro mundo. A primeira coisa que fizemos em Lisboa foi ir ouvir o fado à casa de fado que ainda existe, a Severa"..E gostou tanto que, uns anos mais tarde, feita a pós-graduação em Arquitetura na Colômbia em 1986, se viria a instalar em Portugal, tendo em 1998 sido responsável pelo pavilhão croata na Expo 98, dando o passo da arquitetura para a diplomacia..Essa paixão também Katriina Pirnes a sentiu. Uma passagem pelo Brasil em criança deu-lhe o primeiro contacto com o português. De tal forma que, quando três anos depois voltou à sua Finlândia natal: "Falava uma mistura das duas. Como é natural, as minhas amigas achavam estranho e nem sempre compreendiam o que dizia, porque parte das palavras estava em português. Na altura cheguei a jurar que nunca mais falava português"..O que Katriina não imaginava era que o futuro ia pôr Portugal no seu caminho. "Dos anos passados no Brasil, fiquei com uma saudade de viver no estrangeiro, que foi reforçada pelas férias que passei em Lisboa. Quando acabei os estudos na Finlândia, decidi que queria continuar a estudar em Portugal, mas como nunca tinha aprendido a escrever português, sabia que tinha que estudar português primeiro para poder frequentar um curso superior em Portugal", explica a coordenadora de Comunicação e Assuntos Comerciais da embaixada da Finlândia..Estávamos em 1996 e depois de um período de adaptação ao português de Portugal - em que as novelas brasileiras que passavam na televisão portuguesa eram o seu escape - a finlandesa confessa que hoje a sua maior dificuldade é o género das palavras. ". Em finlandês as palavras são neutras. Mesmo depois destes anos todos ainda cometo erros neste campo. É uma característica na minha expressão que há de continuar comigo para sempre"..Uns anos antes de Katriina chegar a Portugal, Jin Sun Lee vinha para Lisboa tirar o curso na Faculdade de Letras. Foi também a música a levar o português a esta sul-coreana. Maldição, ouvida numa novela local dos anos 1980, Barco Negro, ainda hoje o seu fado preferido de Amália, ou Lusitana Paixão, de Dulce Pontes - "sempre vi o festival da Eurovisão", confessa depois de trautear um bocadinho da música - foi com elas que teve o primeiro contacto com a nossa língua. E talvez por isso a agora funcionária da Embaixada da Coreia do Sul em Lisboa só tenha hesitado um pouquinho quando um dos professores lhe sugeriu estudar Português na faculdade. "Comecei a cantar fado, a ouvir mais", recorda Jin, que numa visita de Amália a Seul chegou mesmo a cantar Barco Negro num concerto privado..Claro que para quem tinha aprendido português com um professor brasileiro, o sotaque foi o maior desafio quando chegou a Lisboa. Uma temporada na embaixada de Portugal em Seul já a tinha posto em contacto com o português de Portugal, mas as aulas acabaram por ser mais difíceis do que estava à espera. "O português é uma língua traiçoeira", conta a sul-coreana, que há mais de duas décadas casou com um português, recordando como o seu trabalho na embaixada, que muitas vezes a obriga a traduzir do português para coreano, lhe mostrou como os portugueses usam "seis ou sete palavras diferentes para dizer a mesma coisa"..Shiv Kumar Singh também podia ter aprendido qualquer língua estrangeira - francês ou italiano chegaram a estar em cima da mesa, mas "foi o português que me escolheu", garante o professor de Estudo Indianos e de Hindi na Faculdade de Lisboa. E se a primeira vez que ouviu falar em Portugal foi no livro de História do 7.º ou 8.º ano, que incluía um capítulo sobre Vasco da Gama, foi já na Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Delhi, que ouviu português pela primeira vez.."Inicialmente parecia chinês", confessa o autor do primeiro Dicionário Hindi-Português, que admite que a pronúncia foi o mais difícil. Mas se "as regras de acentuação, os artigos, os conjuntivos foram alguns desafios no início", Shiv Singh garante que aos poucos começou a "gostar dessas peculiaridades" de uma língua pela qual se apaixonou. Como se apaixonou por Portugal, onde veio pela primeira vez em 2008, com uma bolsa do Instituto Camões e onde hoje vive com a mulher - ela própria uma indiana falante de português - e o filho, já nascido no nosso país..No caso de Eileen McDonough, nem Amália, nem aulas de português, foi mesmo o acaso que trouxe a americana a Portugal e a levou a aprender a língua. "Só ouvi português quando cheguei a Lisboa com um contrato de trabalho de nove meses". Pelo menos era esse o tempo que pensava passar no nosso país, mas a verdade é que já passaram mais de 25 anos..Casada com um português, foi quando tentou lançar a sua empresa de postais Mandamor que Eileen se confrontou pela primeira vez com o português no dia-a-dia. E admite que o mais difícil era entender os clientes. "O meu marido brincava comigo a dizer que a razão pela qual eu me saía tão bem nas vendas era porque enquanto não ouvisse a palavra "não" eu ainda achava que tinha uma hipótese! Se me estivessem a mandar dar uma volta de forma educada, eu nem reparava!", recorda com uma gargalhada a artista que se inspira na calçada portuguesa e nos azulejos para as suas obras feitas com mosaicos..Tal como o croata Maricic foi também de carro que Laurent Goater chegou pela primeira vez a Portugal. Estávamos em 1993 e o único contacto do francês com a língua portuguesa fora através da música de Chico Buarque e Tom Jobim que a mãe ouvia na sua Bretanha. Pelo caminho foi ouvindo umas cassetes do Assimil, mas mal chegou a Lisboa, o agora representante eleito dos franceses em Portugal, depressa percebeu que se queria perceber e falar português ia precisar de ajuda profissional.."Fui à Alliance Française e pedi 10 horas de aulas". No final, o professor disse-lhe para ir para a rua e falar, sem se preocupar com os erros. Mas não foi fácil. "Achei que as pessoas em Lisboa "comiam" o início e o fim de cada palavra. Percebi rapidamente os jornais e os documentos escritos que me davam no escritório. As pessoas percebiam o que eu pretendia dizer, mas levei vários meses até conseguir perceber as pessoas quando falavam. Parecia um tonto", confessa o francês que veio a pensar ficar 16 meses mas acabou por casar com uma portuguesa e é pai de dois filhos "tão franceses como portugueses"..O dilema das expressões idiomáticas.Ora se o seu português é quase perfeito, Ivica Maricic, Katriina Pirnes, Jin Sun Lee, Shiv Signh, Eileen McDonough e Laurent Goater são unânimes em admitir que há aspetos da nossa língua com os quais ainda se debatem. E expressões que os deixam perplexos, mesmo depois de tantos anos..Apaixonado pelo português vernáculo, com o qual contactou graças ao amigo Zé Geraldes, "que foi líder estudantil, beirão casado com uma alentejana" e dono de "uma linguagem muito especial", Goater não esconde que ainda hoje dá erros, para grande desespero dos filhos. "Nunca digo os 'erres' como devia. Confundo o imperativo e conjugo mal o 'tu' e o 'você'. Mas o contacto com o português é tanto, que já começou a meter lusitanismos no seu francês: "Só nós percebemos o que quer dizer 'mon copain s'en est bien safé'"!.Com contactos sociais que lhe permitem usar o inglês, Eileen sofre quando tenta falar português na rua. Tudo porque mal a americana ensaia o seu melhor português, já os portugueses estão a falar com ela em inglês. "Eu sei que estão a tentar ser simpáticos, mas torna-se irritante", admite, enquanto conta como já várias vezes fingiu ser polaca e não falar inglês para forçar o diálogo em português. Talvez por isso a artista continue a ter dificuldade como palavras como "cabeleireiro" e até hoje continue perplexa diante da expressão "ter lata". .Expressões são também o calcanhar de Aquiles de Jin Sun Lee. A própria o confessa que até chegou a comprar um dicionário para a ajudar, mas acabou por desistir dele. E se explica que "é canja" até tem um equivalente em coreano, "cabeça de alho chocho" continua a ser um mistério para ela. Esta perplexidade é partilhada por Shiv Singh. O professor de Estudos Indianos escolheu a mesma expressão para manifestar a dificuldade que ainda hoje sente com o português. "Os ditados e as expressões idiomáticas ainda são os meus TPC", explica..Expressões idiomáticas também fazem parte do "work in progress" de Katriina Pirnes na aprendizagem da língua portuguesa. E a finlandesa admite que ao início teve muita dificuldade em pronunciar "lhe"..Quem não tem dificuldades com expressões idiomáticas é Ivica Maricic. O ex-embaixador da Croácia aprendeu português sozinho, sempre em contacto direto com a língua falada. Além da facilidade que o croata (tal como as outras línguas eslavas) lhe deu na pronúncia de sons como "je", "xe", "lhe" ou "nhe", Maricic garante que os amigos até brincam com ele quando se sai com uma expressão tipicamente lusa.."Para os portugueses a língua é importante, mais até do que para outros povos", explica o ex-embaixador. E garante: "O meu português abriu-me muitas portas e janelas que, se eu não falasse a vossa língua, teriam ficado fechadas. A empatia, a simpatia. É totalmente diferente."