Sampaio

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Cumprida a década que a votos conquistou, Jorge Sampaio saiu com exemplar desprendimento republicano. Dirão os Catões que o cumprimento de um dever não se agradece. Mas um dia aprenderão que o catálogo dos deveres de um homem é tão vasto e exigente que, não raro, violenta a natureza humana. O futuro da República demonstrá-lo-á, quer porque o exemplo de Sampaio foi seguido, quer porque se lamentará que o não haja sido.

Ele não posou para a História. Ainda bem, porque os que o fazem raramente ficam nela. O futuro é sempre mais inteligente do que nós.

Saiu sem controvérsia assinalável. Aqui e além, um escriba que confunde uma razoável literacia e algumas ideias gerais com a condição de intelectual, ou um agente político directamente afectado por actos da sua presidência, tê-lo-ão zurzido. Ninguém escapa a tais maçadas. Mas fazer convergir critérios tão plurais como os de Vital Moreira e José Miguel Júdice, ou Marcelo Rebelo de Sousa e Gomes Canotilho, ou Jorge Miranda e Medeiros Ferreira - nenhum deles, aliás, renunciando ao seu direito à crítica (abdicação que nem Sampaio lhes merecia, após lutar uma vida inteira por ele) -, isso é obra. E mais o é reunir, à saída, a aprovação de 70% dos portugueses - ajuizando o que ele foi e não, como se faz à chegada, aquilo que esperam que ele venha a ser.

Um regime vai-se fazendo, numa praxis que desenvolve e regulamenta o seu acto fundacional. Nos primeiros tempos, ele não tem respostas, além das que aquele expressamente estabeleceu. Tudo é inovador, pelo que não há regras nem excepções. Mas Sampaio não fundou este regime. Lutou pela liberdade e pela democracia, como outros fizeram. Chegou ao cargo sem ter uma revolução para gerir. Eanes instalara a vitória dos moderados, Soares a supremacia do poder civil. Sampaio tinha um regime para pôr em cruzeiro, sem heróis nem salvadores. E fê-lo. Por isso a sua presidência foi muito jurisdicionalizada: ele sabia que os seus actos e decisões não valiam singelamente por si mesmos, mas também como precedentes fazedores de uma jurisprudência política para o futuro. Claro que tal os não isenta de apreciação política. Mas eu, que dele divergi aquando da indigitação de Santana Lopes, sei que foi à luz dessa preocupação que ele decidiu. Ele preencheu vazios e instalou critérios. Os quais, sujeitos à crítica democrática, poderão ou não consolidar-se. Mas já não poderão ser ignorados.

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