No dia de S. Martinho visitam-se as adegas e prova-se o vinho. Um ditado que até hoje continua a fazer parte da tradição em Vila de Frades, perto da Vidigueira, e em muitas outras pequenas povoações da região. É também aqui, bem no coração do Alentejo, que os romanos deixaram a sua marca. As talhas (ânforas de barro) com centenas de anos continuam a contar a história, que passa de geração em geração. Desde há dois mil anos produz-se na região um vinho natural, sem aditivos, cuja técnica foi, ao longo dos tempos, aprimorada pelas ordens religiosas, e depois por toda a população de Vila de Frades, hoje classificada como a "Capital do Vinho de Talha"..Teresa Caeiro, 27 anos, nasceu entre talhas e o vinho produzido para consumo da família, desde há quatro gerações, na adega com 250 anos, cheia de talhas centenárias, adquirida pelo avô. "O vinho de talha sempre foi o meu dia-a-dia", confessa a atual proprietária do projeto Gerações da Talha, criado há pouco mais de um ano. Licenciada em Engenharia Geológica e de Minas, acabou por render-se à paixão pela tradição e, do Instituto Superior Técnico, em Lisboa, regressou às origens para estudar viticultura e enologia, em Évora. Hoje é a cara, e acima de tudo a alma e o coração, deste projeto que visa honrar a história e a memória de uma tradição que está a regressar em força a terras alentejanas..Além de Teresa, são cada vez mais os produtores a recuperar esta forma sustentável de produzir vinho. Dos maiores, como a Herdade do Rocim ou o Esporão, a projetos de menores dimensões como Gerações da Talha ou Honrado, pode dizer-se que o apelo climático, a par da voz da tradição, estão a criar néctares capazes de seduzir os críticos de vinho mais exigentes, mas também os apreciadores comuns que não dispensam um bom vinho à mesa. Adicionalmente, as experiências enoturísticas que passam pela prova destes vinhos e pela viagem na história dos vários produtores, estão a atrair cada vez mais visitantes, contribuindo para reforçar a memória de outros tempos, e para levar a tradição a outros cantos do mundo.. Diz a história que foi na pequena vila romana de S. Cucufate que nasceu a tradição do vinho de talha. É também daí a origem de grande parte das talhas (ou ânforas) que ainda hoje se encontram nas adegas locais. Feitas de barro alentejano, de forma manual, estes recipientes continuam a cumprir a sua missão de produzir o vinho. A dificuldade está, agora, em conseguir talhas novas. "É difícil encontrar especialmente as que são feitas de barro alentejano", conta Bruno Gomes, responsável pelo enoturismo na Herdade do Rocim. Na "adega pequena" ainda se encontram algumas talhas originais -- a mais antiga data de 1908 --, que passaram entre as gerações da família de Pedro, o fazendeiro da herdade, e que fazem parte da história da propriedade, adquirida há 15 anos pela família de Catarina Vieira (Grupo Movicortes), a enóloga da casa..Mas o foco nos vinhos da talha é, para o Rocim, uma aposta mais recente. A entrada do enólogo Pedro Ribeiro no projeto, em 2018, trouxe uma maior atenção a estes vinhos, essencialmente, "por serem diferentes", afiança Bruno Gomes. "Fomos dos primeiros a engarrafar o vinho de talha, e viemos dar-lhe algum glamour sem perder de vista a tradição", reforça. Hoje a herdade produz cinco gamas distintas de vinho da talha, do verde ao tradicional, passando pelo menos intervencionado ou pelo mais moderno. Em comum têm o processo de produção 100% sustentável. "A uva é apanhada inteira e colocada na talha ainda com alguns engaços", explica o responsável pelo enoturismo. Entre 15 e 20% da capacidade da talha é preenchida com os cachos inteiros, e o restante com os bagos já sem os engaços..Durante o processo de fermentação -- que dura entre duas a três semanas --, as talhas são mexidas com o "rodo" (uma espécie de vara), três vezes por dia, para uma prensagem manual que acalma a transformação da uva e empurra as cascas, os engaços e as grainhas para o fundo da talha. "Este fundo cria uma camada gelatinosa, a que chamamos a "mãe", que é perfurada na altura de S. Martinho quando se abre a talha, e que faz a filtragem natural do vinho", explica Bruno Gomes. Neste processo também não existem leveduras artificiais pois, como revela Teresa Caeiro, "são as leveduras indígenas que fazem a transformação do mosto em vinho". É a natureza a garantir que tudo acontece de forma natural..Entre as curiosidades deste processo de produção destaca-se ainda a utilização da cera de abelha para revestir o interior da talha, garantindo a sua impermeabilização. No Gerações da Talha esta tradição mantém-se, tal como no projeto Honrado Wines, criado por António Honrado que, há cerca de 20 anos, transformou a antiga "Taberna do Sr. Tomé" no restaurante País da Uvas, uma homenagem ao poeta Fialho de Almeida, nascido numa habitação contígua..Também aqui se preserva a tradição no processo de produção e o vinho da casa continua a atrair centenas de visitantes para a prova do "vinho novo", entre outubro e dezembro. Já no tempo do Sr. Tomé, conta a guia que nos acompanha, o vinho novo era prova obrigatória na taberna, no fim do dia de trabalho, e acompanhado por petiscos regionais e maçã (usada para cortar o álcool). O vinho era retirado diretamente da talha com jarros de barro e, para animar, cantavam-se as modas alentejanas. Agora, quem vem de fora procura a tradição, mas também quer levar o néctar da Honrado Vineyards. Em 2016 teve início o processo de certificação e o seu engarrafamento, garantindo uma durabilidade até sete anos. A produção também foi aumentada e conta, desde então, com a "Cella Vinaria Antiqua", uma adega-museu secular restaurada com o objetivo de produzir, preservar e divulgar esta técnica milenar de produzir vinho em talhas de barro..Mas este é também um espaço com história. Durante as obras de ampliação foi descoberta uma antiga adega romana com três dornas (talhas enterradas). O espaço destinado à nova adega ganhou assim outra vida, fazendo nascer uma zona de produção que é, em simultâneo um museu onde a tradição romana continua a dar origem ao vinho. Aqui, na "Cella Vinaria Antiqua", os arqueólogos encontraram ainda um poço cuja água era usada pelos romanos para fazer a higienização das talhas e da adega, assim como um sistema de refrigeração romana - a frigidaria. Trata-se de um canal subterrâneo para arrefecer o espaço durante o período da fermentação, onde a água circulava para refrescar o chão da adega e garantir que as talhas não partiam. As escavações revelaram também um alambique, usado para transformar as balsas que ficavam no fundo das talhas em aguardente. Neste processo de produção, totalmente sustentável, é tudo aproveitado, da vinha até ao copo e, mesmo com o vinho de talha a ser engarrafado, a tradição de visitar as adegas e de provar o vinho por altura do S. Martinho mantém-se inalterada..Pedro Ribeiro não tem dúvidas de que a tradição vende e de que uma boa história atrai a curiosidade de quem procura a autenticidade num mercado como o do vinho, com uma concorrência feroz e repleto de projetos e de marcas. Em entrevista ao Diário de Notícias, o diretor-geral da Herdade do Rocim conta que se apercebeu desta realidade numa viagem a uma feira internacional e que, desde então, alinhou a estratégia da empresa com a história e a tradição com dois mil anos na região. "Se forem às casas de Cuba, Vidigueira ou Vila de Frades, toda a gente tem ânforas em casa para fazer o seu próprio vinho de talha. No Rocim, há pelo menos 200 anos que se faz vinho de talha"..Apesar de reconhecer o risco da mudança, o responsável pelos vinhos do Rocim, admite também que ter uma história local com densidade e verdade histórica ajudou na transformação. No fundo, explica, "foi pegar em tudo isto, desempoeirar um bocadinho e levar estes vinhos para os melhores restaurantes do mundo. É aqui que realmente se constrói a marca e se leva a marca Alentejo e a marca Portugal para um patamar diferente". Pedro Ribeiro acredita ainda que apesar destes vinhos não serem perfeitos tecnicamente, têm a autenticidade e o lado puro que os distingue. "E isto ajudou bastante a construir a marca"..Para Teresa Caeiro, foi a memória de uma vida entre talhas que a trouxe de volta a Vila de Frades. Isso, e o amor pela tradição, incutida pelo avô Chico Anacleto, e pelo rapaz que lhe encheu as medidas, e com quem hoje partilha o projeto "Gerações da Talha". Durante os três anos que passou a estudar viticultura e enologia em Évora desenvolveu o projeto, criou marcas e logótipos. Hoje, a Gerações da Talha comercializa os brancos e tintos "Na Talha", "Farrapos" (o mais tradicional, cujo nome serve de homenagem aos habitantes de Vila de Frades, conhecidos por farrapeiros) e "Professor", dedicado ao avô e aos seus ensinamentos, todos provenientes de castas locais e de vinhas antigas..A preservação da memória e da tradição faz parte deste projeto, mas também da missão de vida de Teresa Caeiro. Através de workshops com crianças procura passar o conhecimento sobre o vinho da talha às gerações futuras, mantendo viva a história e as "estórias" da região. Nas experiências vínicas que partilha com visitantes e turistas, a mentora da Gerações da Talha, divulga, além do vinho, outros produtos da região que enchem a mesa de petiscos e que ajudam a criar as memórias de uma viagem a todos quantos passam por Vila de Frades.