Rússia na primeira linha da agenda externa de Biden
No seu primeiro discurso dedicado à política externa desde que tomou posse, o novo presidente americano anunciou um reset após quatro anos da agenda America First de Trump, proclamando que a América "está de volta"- "America is back" -, prometendo reinvestir nas alianças e na diplomacia, e traçou uma agenda em que a Rússia representa um dos grandes desafios à segurança e aos interesses da América.
"Tornei claro ao presidente [Vladimir] Putin, de uma forma muito diferente da do meu antecessor, que os dias em que os Estados Unidos deixavam andar face às ações agressivas da Rússia já lá vão", terá dito Joe Biden ao líder russo, de acordo com um sumário da conversa entre os dois líderes divulgado entretanto pelo Departamento de Estado norte-americano.
A Rússia terá de ser chamada "às suas responsabilidades" - eis, numa palavra, o recado de Joe Biden a Moscovo e ao mundo. O novo inquilino da Casa Branca prometeu responsabilizar Putin pelos ciberataques, pela ingerência nas eleições de 2016 e apelou à libertação do líder da oposição Alexei Navalny.
Dias antes, no primeiro contacto telefónico com Vladimir Putin, o presidente americano repetira já o aviso ao Kremlin, garantindo que "os Estados Unidos atuarão com firmeza na defesa dos seus interesses nacionais" em resposta a qualquer ação russa que "atinja a América ou os nossos aliados".
O presidente americano advertiu Putin contra quaisquer veleidades de interferência em eleições, e chamou à conversa assuntos como o ciberataque SolarWinds, atribuído a Moscovo, as acusações de que a Rússia teria pagado aos talibãs para matarem soldados americanos no Afeganistão, o caso do envenenamento e posterior detenção de Alexei Navalny e os movimentos da oposição na Rússia.
A própria relação pessoal entre os dois homens não parece das mais prometedoras. Vladimir Putin foi dos últimos líderes mundiais a congratular Joe Biden pela sua vitória eleitoral.
O novo chefe da Casa Branca limita-se a confirmar uma política há muito anunciada. Num artigo surgido na Foreign Affairs na primavera do ano passado, o então candidato presidencial defendia um acentuado endurecimento da política face a Moscovo, incluindo o agravamento das sanções impostas por Obama em 2014 na sequência da ocupação russa da Crimeia, e propunha-se aumentar a assistência militar à Ucrânia (que já defendia como vice-presidente de Obama) de forma a garantir que a Rússia pague "um preço mais elevado" pela sua intervenção no leste do país.
DestaquedestaqueA própria relação pessoal entre os dois homens não parece das mais prometedoras. Putin foi dos últimos líderes mundiais a congratular Biden pela sua vitória eleitoral.
Biden, apontado como um "falcão no que toca às relações com Moscovo", não excluía mesmo a possibilidade de uma operação de mudança de regime (regime change) na Rússia através do apoio ativo aos grupos de oposição a Vladimir Putin.
A atitude de confronto aberto com as ambições russas merecerá, tudo o indica, um largo consenso no seio da equipa de Biden, dominada por veteranos da administração Obama, e com uma larga experiência no trato político com Vladimir Putin.
Antony Blinken, o eleito para chefiar o Departamento de Estado do novo presidente americano, considera a política russa como agressiva e imprevisível e exige que a Rússia seja chamada a responder por ações como o envio de tropas para a Ucrânia e apoiar o ditador sírio Bashar al-Assad. Exige ainda que Moscovo se abstenha de qualquer intervenção na Bielorrússia e aceite a Geórgia como possível membro da NATO. Blinken promete em suma fazer tudo o que puder para conter a influência russa
Biden e seus pares parecem sobretudo convictos de que a Rússia só mudará se for forçada a isso - o que legitima plenamente, aos olhos de Washington, qualquer tipo de pressão política, económica ou militar sobre Moscovo.
A agenda de contenciosos entre a Rússia e os Estados Unidos oferece todos os ingredientes para uma crise de proporções imprevisíveis. O caso Navalny garante a oportunidade de uma forte mobilização internacional contra a Rússia. A Bielorrússia mergulhou para já num aparente impasse, mas Aleksander Lukatchenko continua na corda bamba. A situação na Ucrânia mantém-se explosiva. Washington pode pressionar a Rússia com novas sanções, e aumentar a pressão sobre a Alemanha para pôr termo ao NordStream 2, o polémico gasoduto que permitirá o fornecimento de gás russo à Alemanha, e que assume crucial relevância económica para Moscovo.
Joe Biden considerou o NordStream 2 um "mau negócio para a Europa" e parece preparado para prosseguir a política do seu antecessor e impor novas sanções às companhias envolvidas na construção do pipeline. Washington considera que o projeto ameaça agravar a dependência energética e garantir a Moscovo maior influência na Europa. Por outro lado, Washington quer garantir o mercado europeu para a exportação do seu gás de xisto.
O NordStream 2 tem sido muito contestado e Angela Merkel vê-se sob forte pressão da França e de outros países europeus para abandonar o projeto em retaliação pelo caso Navalny.
Biden pode ainda jogar com outro fator. A degradação das relações entre a Europa e a Rússia - no momento em que Biden anuncia um alinhamento das políticas externas da União Europeia e dos Estados Unidos, particularmente em matéria de segurança.
O fiasco da missão do chefe da Comissão Europeia Josep Borrell a Moscovo, há uma semana, desencadeou uma azeda troca de acusações entre Bruxelas e Moscovo.
DestaquedestaqueBiden pode ainda jogar com outro fator. A degradação das relações entre a Europa e a Rússia.
Ao mesmo tempo que Sergei Lavrov, o chefe da diplomacia russa, rejeitava secamente os apelos de Borrell à libertação de Navalny, era anunciada a expulsão de um grupo de diplomatas ocidentais acreditados em Moscovo por alegada participação nas manifestações pela libertação do líder da oposição. Dois dias depois, a Alemanha, a Polónia e a Suécia respondiam na mesma moeda, expulsando vários diplomatas russos.
No regresso de Moscovo Borrell escreveu num blogue que a Rússia parece estar a "desligar-se progressivamente da Europa" e a ver nos valores democráticos "uma ameaça existencial". Lavrov respondeu que a Europa é "inconfiável" e acusou Paris e Berlim de "arrogância" face à Rússia.
Dois dias depois Sergei Lavrov iria mais longe, ameaçando, numa entrevista a um canal de televisão russa, que a Rússia estava preparada para cortar relações com a União Europeia se fossem impostas novas sanções capazes de criar riscos para a economia do país.
A eventual imposição de novas sanções a Moscovo promete dominar a agenda da próxima reunião do chefe da Comissão Europeia com os 27 ministros dos Estrangeiros dos países da União.
O azedar das relações entre a Rússia e a Europa joga a favor de Biden num momento em que o novo presidente americano aposta fortemente num vasto consenso dos aliados em torno da nova política externa dos Estados Unidos. A NATO está mais do que mobilizada. Num relatório do NATO Reflection Group criado o ano passado pelo secretário-geral da Aliança, Jens Stoltenberg, "NATO 2030: United for a New Era, "conclui-se que uma Rússia "persistentemente agressiva" constitui "a maior ameaça militar para a Aliança na próxima década".
DestaquedestaqueA eventual imposição de novas sanções a Moscovo promete dominar a agenda da próxima reunião do chefe da Comissão Europeia com os 27 ministros dos Estrangeiros dos países da União.
Biden tem enfim do seu lado o crescente isolamento da Rússia e as turbulências internas com que Vladimir Putin se debate. A prometida modernização da economia russa não passou do papel, e continua a basear-se na exportação de produtos naturais. A fuga de cérebros para o Ocidente é cada vez maior. Os salários reais caem há anos e a fuga de capitais está a custar biliões ao país. E a mobilização popular provocada pela detenção de Alexei Navalny pode representar afinal uma forte reação popular face à degradação das condições de vida no país e, em última análise, uma contestação ao próprio regime de Vladimir Putin. Um quadro de vulnerabilidade que poderá ajudar a explicar a agressividade das reações russas, em concreto no caso Navalny.
E, no entanto, o mandato de Biden começou sob os melhores auspícios no que toca às relações russo-americanas.
Na sequência do telefonema entre Joe Biden e Vladimir Putin, e a apenas alguns dias de o tratado expirar, Washington e Moscovo acordaram manter em vigor por mais cinco anos o último tratado de controlo de armamentos em vigor, depois das denúncias sucessivas de acordos como o tratado INF (sobre armas nucleares de alcance intermédio), do Open Skies (sobre medidas de confiança militar no espaço aéreo) durante a administração de Donald Trump. O New START, assinado durante a era Obama, limita o número de ogivas, mísseis e veículos de transporte dos arsenais nucleares estratégicos dos dois países e determina várias outras restrições nos arsenais dos dois países.
Tanto Biden como Putin destacaram a importância do acordo, e sublinharam que se abre assim uma nova perspetiva na área crucial do controlo de armamentos.
Washington contaria mesmo com uma preciosa "mãozinha" de Moscovo nos esforços para chamar a China à mesa das negociações em matérias como os arsenais estratégicos e os mísseis de alcance intermédio - apelo a que Pequim tem sistematicamente resistido, repetindo que só entrará em quaisquer negociações quando atingir a paridade estratégica em matéria nuclear com a Rússia e os Estados Unidos.
DestaquedestaqueWashington contaria mesmo com uma preciosa "mãozinha" de Moscovo nos esforços para chamar a China à mesa das negociações em matérias como os arsenais estratégicos e os mísseis de alcance intermédio.
No seu primeiro discurso de política externa, o novo presidente americano deu ainda relevo a outras áreas de potencial cooperação com Moscovo. Moscovo e Washington têm um interesse mútuo na prevenção da guerra nuclear, bem como na luta contra o terrorismo internacional, na recuperação do acordo nuclear com o Irão e no combate às alterações climáticas.
Por outro lado, se Putin parece enfrentar um período de incertezas, Biden tem igualmente uma agenda pesada entre mãos. Além da missão de tentar reparar as divisões da sociedade americana, cabe-lhe a redefinição de uma política em relação à China, o relançamento da economia ou a reparação dos danos herdados das iniciativas do seu antecessor em matéria de política comercial.
Biden promete "mão dura" face à Rússia, numa aparente linha de continuidade com uma política que vem da administração Clinton e atravessa a era Obama. Ao mesmo tempo, acaba de garantir uma nova oportunidade às negociações de controlo de armamentos com Moscovo.
As relações russo-americanas nos próximos quatro anos deverão definir-se num delicado equilíbrio entre estas duas linhas.