São seis da tarde de quarta-feira e, numa sala do Colégio Almada Negreiros, um antigo colégio jesuíta que agora integra o campus de Campolide da Universidade Nova de Lisboa, está prestes a começar uma aula de Filosofia da História. Ou, como precisa o professor logo de início, de história da Filosofia da História..É a primeira aula do segundo semestre, tempo de apresentações aos 10 alunos de mestrado que se sentam na sala apertada. "Não sou filósofo, sou historiador", avisa o docente, explicando que também não é especialista numa época histórica em particular, "tirando alguns anos do século XVIII". Nove, mais precisamente, parte da existência da Real Mesa Censória - que "herdou" do Santo Ofício a tarefa de fiscalizar as obras publicadas no país -, objeto da tese de doutoramento deste docente, e que demorou mais que isso a escrever: 15 anos. Motivo de piada que o próprio repete: "Ainda bem que não foi sobre a Inquisição, teria demorado 40 anos"..Rui Tavares - é ele o professor desta aula - tem mais entradas no currículo para além das que refere aos alunos. Antigo eurodeputado, atual vereador (sem pelouro) da Câmara de Lisboa, futuro deputado, o historiador tinha como plano de vida dar aulas e, em paralelo, ir escrevendo - obras próprias, traduções. "Achei que ia ser professor e escrever umas coisas, acabei a ganhar a vida a escrever e às vezes a dar umas aulas", conta ao DN já depois desta sessão de apresentação da disciplina que vai ministrar neste semestre e que já alterou de quarta para segunda-feira - vem aí a vida parlamentar, que dá mais tréguas à segunda..Rui Tavares vai buscar os primórdios das duas facetas que o projetaram na vida pública - historiador e político - à infância e às raízes familiares, na Arrifana, no Ribatejo ("a minha aldeia", como lhe chama, apesar de ter nascido em Lisboa). A primeira é a mais antiga: "Era miúdo, tinha uns quatro anos, a minha mãe gostava muito de História, o meu pai brincava muito com isso e um dia ouvi-o dizer à minha mãe "o miúdo se calhar é que vai para historiador" - sou o mais novo de cinco irmãos. Aquilo ficou-me na cabeça e comecei a dizer que queria ser historiador. Ninguém me ligou nenhuma, eram coisas de miúdo... Mas ficou, fui sempre gostando e nunca mudei de rumo"..O outro lado também vai buscar as raízes à mesma Arrifana, no país politizado do pós 25 de Abril, mesmo para quem tinha nascido em 72: "Na minha aldeia, quando os miúdos se zangavam, o insulto era chamar-lhes fascistas". "Nos anos 70 a política tinha permeado todas as relações pessoais", relembra: "A minha aldeia tinha, e tem até hoje, uma enorme votação à esquerda. Na minha família, o PCP era muito forte, mas os meus pais eram mais próximos do MDP/CDE. Era uma família independente de esquerda, à esquerda do PS, não ortodoxa". Ou seja, no "meio da esquerda" - "é a posição política em que quase nasci e em que continuo"..Pelos 12/13 anos, conta, chegou à conclusão que não podia simplesmente "herdar" as posições políticas da família e instalou-se na biblioteca municipal da Penha de França a ler tudo o que as estantes ofereciam sobre política, esquerda, direita, "todo o tipo de ideologias". Um bocadinho "preocupado": "Se mudasse muito como é que ia chegar a casa e explicar que era de direita?". Não teve esse problema, mas teve uma surpresa: "Ganhei um grande fascínio pelos autores libertários. Quando comecei a definir-me politicamente foi logo como um não marxista, como alguém da esquerda libertária. Isso já é da minha lavra"..Durante muito tempo a política foi um interesse muito secundário para o jovem historiador, um cenário que mudou após a viragem do milénio, com a Guerra do Iraque - "Voltei a politizar-me". Um conflito que coincidiu no tempo com o aparecimento em força dos blogues. Rui Tavares acabaria a escrever no Barnabé, com Daniel Oliveira, até 2005. Nesse ano, a fazer umas traduções intermitentes, entre o precário e o desempregado, lançou-se ao Pequeno Livro do Grande Terramoto, escrito em dois meses para chegar a tempo da efeméride dos 250 anos. Depois, chegou o convite para escrever no Público, onde se viria a manter mais de década e meia, até há cerca de um mês..Pelo caminho, acontece a primeira incursão na política ativa, como candidato independente ao Parlamento Europeu, em 2009, nas listas do BE. A ligação política não durou mais que dois anos: em 2011 deixou a delegação bloquista, mudando-se do Grupo de Esquerda Unitária para a bancada dos Verdes europeus. Em 2014 nasce o Livre..No futuro próximo Rui Tavares vai manter um pé na docência e os dois na política, acumulando o lugar de vereador sem pelouro na Câmara de Lisboa e o de deputado. E se será provavelmente o segundo, a grande montra da política nacional, a ocupar-lhe grande parte do tempo, a preferência vai para o plano autárquico: "Lisboa é uma paixão, gosto sobretudo de política local ou de política europeia, é nesses dois extremos que me sinto mais realizado"..O objetivo passa por criar pontes entre os dois palcos políticos que o Livre agora ocupa. "O que vamos tentar é que haja sinergia entre o mandato na Câmara Municipal, que será muito desenvolvido em equipa", diz Rui Tavares, que durante a campanha eleitoral às legislativas foi substituído nas reuniões camarárias por Patrícia Gonçalves e Carlos Teixeira, números dois e três do Livre nas listas da coligação com o PS. Promete uma oposição em "diálogo, franca, leal e honesta, mas oposição" a Carlos Moedas. E se o partido tem na lista de propostas questões como a criação de um sistema de transporte escolar na cidade, a criação de uma grande biblioteca pública em Lisboa, ou a renaturalização do Vale de Alcântara, a perspetiva não se fecha neste mandato - "O que estamos a fazer é a construir um acervo de propostas de uma esquerda verde europeia para a capital do país, que historicamente tem sido um elemento essencial para o crescimento dos partidos da nossa família política. Agora, a partir da oposição, preparamos as ideias que mais tarde, acreditamos nós, hão de levar o Livre a fazer parte do governo da cidade, de preferência numa convergência à esquerda, que será a maneira como a esquerda voltará a ganhar eleições em Lisboa"..A mesma palavra - convergência - é repetida como um princípio para um mandato parlamentar em que as bancadas mais à esquerda estarão em mínimos históricos. Rui Tavares corrige o prisma: "A esquerda, na sua totalidade, continua a ter uma maioria muito ampla na Assembleia da República"..É esta ideia de convergência, insiste, que deve presidir à XV legislatura, que deverá iniciar-se lá para o final do mês, e terá um marco histórico pelo caminho. "Este vai ser o mandato dos 50 anos do 25 de Abril. Nós temos que demonstrar capacidade de diálogo e de compromisso, responsabilidade e visão de futuro em relação aos próximos 50 anos. Do nosso ponto de vista isso faz-se com um diálogo à esquerda para apresentar ao país as linhas gerais de uma agenda à esquerda, para um novo modelo de desenvolvimento de Portugal", defende o fundador do Livre. Sem isso "não vamos sair da cepa torta": "Temos que ter um objetivo mais ambicioso do que lutar apenas pela convergência com a média da União Europeia. Portugal tem de ser uma economia de vanguarda no quadro da UE, aquilo a que chamamos uma economia do conhecimento e da descarbonização, que permita ter alto valor acrescentado e financiar excelentes serviços públicos, creche universal, um bom Serviço Nacional de Saúde, bom ensino público"..Para lá desse "grande debate sobre para onde é que vamos", o Livre quer avançar com propostas muito concretas, a primeira das quais já está decidida: a adaptação para Portugal do chamado "super-bonus" italiano, um programa que financia a 110% a melhoria da eficiência térmica dos edifícios, por exemplo subsidiando integralmente a compra de painéis solares até ao limite de cem mil euros (os 10% restantes são dados em créditos fiscais). "Portugal tem as casas da Europa ocidental onde se passa mais frio, há uma tragédia silenciosa de que praticamente ninguém fala, as pessoas que morrem todos os invernos a tentar aquecer as suas casas. Por outro lado, baixamos a fatura energética e fazemo-lo de forma sustentável", sublinha Rui Tavares, apontando esta medida como o início de um "círculo virtuoso"..A expansão a todo o país da rede de transporte escolar que defende para Lisboa - aí estão as sinergias entre os dois palcos políticos - é outra medida que quer levar ao Parlamento. Sob um mesmo pano de fundo: "O objetivo que temos é o de firmar a esquerda verde europeia em Portugal, levar as pessoas a perceber que esta é uma família política que é ao mesmo tempo idealista - nos Direitos Humanos, na ecologia, em todas as questões da liberdade - e ao mesmo tempo muito prática, que propõe soluções concretas para problemas reais que as pessoas sentem todos os dias". Um posicionamento que Rui Tavares espera que venha a redundar, daqui a quatro anos e meio, na eleição já não de um deputado único, mas de "um grupo parlamentar"..Se o Livre é visto com alguma desconfiança em parte do seu espetro político - uma espécie de esquerda "fofinha" demasiado disponível para dar a mão ao PS - o futuro deputado contrapõe que "é um partido que nasce noutra época, já no século XXI, que tem como referente a esquerda verde europeia, que quer representá-la em Portugal e que se está nas tintas para as velhas guerras entre esquerdismo e centrismo na esquerda portuguesa". O Livre, sustenta, "não vive nesse mundo de uma relação obsessivo-compulsiva com as memórias e traumas do PREC, com as suas inimizades de uma esquerda de origem mais marxista e o PS"..Para Rui Tavares "quem vive obcecado com o PS é muito mais o BE e o PCP. Vivem numa relação de competição, em que por um lado podem rejeitar o PS, mas por outro têm como referente o PS. Vimos isso agora na campanha eleitoral"- "Nós estamos para lá disso, não é a nossa história, não temos essa relação de amor-ódio. Seguimos o nosso caminho: queremos falar com a esquerda, com qualquer partido da esquerda democrática e achamos que para fazer mudanças são necessárias convergências à esquerda"..Em 2010, numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, Rui Tavares antecipava o fim do seu périplo pela política para 24 de março de... 2022. "Pus um prazo a mim mesmo para andar nestas coisas em que ando, principalmente a política. Termina quando o 25 de Abril fizer 48 anos, quando tivermos mais tempo de democracia do que tivemos de ditadura [o que acontecerá a 24 de março próximo]", dizia então, antecipando que a sua ideia de uma "boa vidinha" era ir "para a reforma, traduzir e ler Plutarco". "Os planos saíram-me completamente furados", corrige agora: "Com este adiamento da tomada de posse do parlamento tenho impressão que vou estar a entrar precisamente quando era suposto sair"..Depois do que aconteceu em 2019, em que o Livre perdeu a representação parlamentar ao fim de dois meses, era preciso provar que o "partido não era um combate perdido", argumenta : "Sou mais feliz a escrever livros de História e a ter intervenção pública, já tenho saudades da crónica do Público. Mas às vezes é preciso abandonar a nossa zona de conforto para fazer combates que têm de ser feitos. Este era um deles"..susete.francisco@dn.pt