"Os juízes são a classe menos confiável em Portugal." Foi Rui Rangel, o juiz que foi agora expulso da magistratura, quem disse esta frase em 2015, em declarações jornal i, e é um dos exemplos de declarações polémicas, para muitos inadequadas para um juiz, que Rangel proferiu ao longo dos anos e que lhe valeram processos disciplinares. Com 64 anos, 37 de magistratura, 15 dos quais como desembargador, Rui Rangel acaba punido com a sanção mais grave aplicada a um magistrado e é demitido antes da conclusão do processo-crime em que é arguido. Na Operação Lex, que motivou a medida disciplinar, é suspeito de corrupção..Sempre gostou de ter notoriedade, fosse nos meandros judiciais, através de participações em programas televisivos ou noutras áreas, como a candidatura que protagonizou à presidência do Benfica em 2012, para espanto de muitos dos seus pares. Recato devido ao cargo que desempenhava nunca foi um fator que considerasse e fosse impeditivo de se fazer ouvir..Rui Rangel nasceu em Angola a 12 de março de 1955. Na cidade de Sá da Bandeira, hoje Lubango, cresceu numa família com mais três irmãos, entre os quais o falecido jornalista Emídio Rangel. De resto, Rui, após a família regressar momentaneamente a Lisboa e voltar a Luanda depois, foi também jornalista em Angola, onde militou no MPLA. Chegou a ser detido em 1977 na purga que vitimou Nito Alves. A família regressaria logo depois a Portugal..Foi já em Lisboa que ingressou na Faculdade de Direito, onde se formou. Chegou a juiz em 1982 e casou com Fátima Galante, também juíza, com quem teve um filho, também ela arguida na Operação Lex e punida agora pelo Conselho Superior de Magistratura com a pena disciplinar de aposentação compulsiva. Estavam separados há anos mas mantinham grande proximidade..Sem envolvimento direto, em 1996 Rangel viu a sua mulher Fátima Galante ser acusada de corrupção num processo que envolvia o solicitador Hernâni Patuleia. Em causa estava um alegado favorecimento a uma das partes de um processo judicial. A juíza viu a acusação de corrupção passiva arquivada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, enquanto o solicitador foi condenado por corrupção ativa na forma tentada a três anos de prisão com pena suspensa..Um juiz benfiquista.Rangel exerceu em vários tribunais e nunca deixou de procurar os holofotes. Em 1992 chegou a secretário-geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, então liderada por Noronha Nascimento, ex-presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Em 2004 sobe a juiz desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa e a exposição mediática torna-se uma constante..Funda, em 2007, a Associação Juízes pela Cidadania, agremiação cívica que acabou por se eclipsar. É neste ano que se mostra como grande benfiquista e surge ao lado de José Veiga. Sócio do clube da Luz, Rui Rangel integra com o empresário de futebol o Movimento Benfica Vencer, Vencer, que tinha como objetivo levar José Eduardo Moniz à presidência do Benfica..Já nesta altura a ligação ao futebol gerava estupefação na magistratura. Mas o melhor estava para vir, quando em 2012 resolve ele próprio liderar uma candidatura a presidente do Benfica contra Luís Filipe Vieira. "Estou limpo, vou limpo para o Benfica e vou para o Benfica", declarou no anúncio da candidatura. O Conselho Superior da Magistratura ainda sugeriu que suspendesse o exercício de funções, pelo menos durante a campanha eleitoral do clube. Rangel não seguiu o conselho. A guerra com Luís Filipe Vieira foi acesa, com o juiz a criticar a falta de democracia no clube e Vieira a acusar Rangel de "não perceber nada da realidade do Benfica" e de "envergonhar a magistratura". Mais tarde tornaram-se amigos e Rangel passou a colaborar com Vieira..Magistrado e comentador.Por esta altura já era um frequentador assíduo de programas televisivos, onde opinava sobre processos judiciais em curso. Um deles foi o chamado processo Esmeralda, relativo a uma criança cuja tutela foi disputada pelo pai biológico e pela família adotiva. Em 2007 Rangel foi alvo de um processo disciplinar por causa de um artigo de opinião que publicou no Correio da Manhã sobre o caso. Em causa estava saber se Rangel violou ou não o "dever de reserva" relativo ao estatuto dos magistrados por ter criticado o acórdão do tribunal de Torres Novas que condenou o sargento Luís Gomes, pai adotivo de Esmeralda, por sequestro agravado. Escreveu que era uma decisão "desproporcional", "cega" e "brutalmente injusta". O processo disciplinar acabou por morrer, por prescrição..As polémicas sucederam-se com Rui Rangel a querer ter voz em demasiados assuntos, desde a justiça, criticando reformas efetuadas por ministros, à política. Em 2014 chegou a apadrinhar a formação do partido político Nós, Cidadãos. E também apresentou um projeto com Fernando Seara para liderar a Liga de Clubes de futebol..Na televisão, esteve com Marinho e Pinto e Moita Flores no programa Justiça Cega (2014), e foi presença frequente em programas da manhã da RTP, onde comentou diversos casos mediáticos, fosse o violador de Telheiras, o desaparecimento de Rui Pedro ou a condenação de rei Ghob, o homem da Lourinhã que foi punido com a pena máxima pelo homicídio de três jovens..As críticas à Operação Marquês.A partir de 2015, com a Operação Marquês a decorrer, e já depois de Rangel ter criticado publicamente o trabalho do procurador do DCIAP Rosário Teixeira e do juiz Carlos Alexandre (foi alvo de uma pena disciplinar de 15 dias "por violação do dever de reserva"), acaba por lhe cair em sorteio um recurso da defesa de José Sócrates a que dá provimento e faz cair o segredo de justiça interno. Ainda neste acórdão da Operação Marquês, foi suspeito de ter plagiado outros magistrados e um professor universitário, o que negou..No mesmo ano, o MP já tinha feito chegar ao CSM uma participação contra Rangel devido a um negócio que envolvia um arguido do processo vistos gold. Noticiou o Observador que Rangel terá negociado com um empresário e elemento do Consulado-Geral de Angola em Portugal a produção de livros jurídicos, o que poderia constituir uma violação do regime de exclusividade a que estão sujeitos os juízes..Quando surge a Operação Rotas do Atlântico, em 2016, com José Veiga e Paulo Santana Lopes a serem suspeitos de corrupção e branqueamento de capitais com dinheiros do governo da República do Congo, o nome do juiz Rui Rangel é associado e a PGR confirma que estava sob investigação. O processo ainda não tem acusação..Pelo meio, outros casos foram abalando a sua credibilidade. Chegou a ser condenado por falta de pagamento a uma clínica de estética e em 2014 foi alvo de uma penhora por falta de pagamento a uma empresa de reparação de automóveis..Em 2017, o caso de José Sócrates volta a ir parar às suas mãos. A defesa do antigo primeiro-ministro pedia a nulidade do processo. O Ministério Público não se conformou e pediu escusa de Rangel, por "considerar existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do magistrado judicial". O Supremo Tribunal de Justiça concordou e decidiu que o juiz ficava impedido de intervir no processo..Alvo de buscas.Em janeiro de 2018 é desencadeada a Operação Lex e Rangel e a ex-mulher Fátima Galante são alvo de buscas. Em causa estão suspeitas de corrupção/recebimento indevido de vantagem, branqueamento de capitais, tráfico de influências e fraude fiscal. Há 14 arguidos constituídos, entre os quais Luís Filipe Vieira e Fernando Tavares, dirigentes do Benfica. As instalações do clube foram alvo de buscas. Foi a Rota do Atlântico que motivou a certidão que deu origem à Operação Lex. Foram encontrados e-mails e talões de depósitos milionários na conta bancária de Rui Rangel, o que permitiu aos investigadores suspeitar de um circuito do dinheiro, com origem em transferências bancárias de José Veiga. A acusação estará para breve..Já como arguido, Rui Rangel foi suspenso de funções mas acabou neste ano por regressar a o trabalho na Relação de Lisboa, onde mais uma vez lhe foi sorteado um recurso da Operação Marquês. Perante o clamor público, Rangel pediu escusa..Sempre crítico da classe que integrava, Rui Rangel dizia que "os juízes, infelizmente, não sabem ser membros de um poder soberano, agem com mentalidade de funcionários públicos. São a classe menos confiável em Portugal"..Agora teve uma resposta do Conselho de Superior de Magistratura, com a sanção disciplinar mais grave, a demissão, da qual ainda pode recorrer. "A bem da credibilidade do sistema de justiça e da confiança dos cidadãos, neste caso muito particular, entendeu-se que não se deveria aguardar o desfecho do processo criminal, que contém matéria conexa com o disciplinar", afirmou Joaquim Piçarra, presidente do CSM, para quem esta decisão do plenário demonstra que "o sistema de justiça funciona e, quando tiver de agir contra os próprios agentes do sistema, agirá".