Medalhas e taças é o que não falta no álbum Os Nossos Heróis do Desporto, que chega às livrarias em tempo de celebrar as atividades desportivas quando toda a vida humana pública se desfaz em confinamentos constantes. Rui Miguel Tovar reúne cinquenta figuras - ou heróis - portugueses que se têm destacado nesta área e biografa-os em textos curtos, mas recheados de pormenores sempre interessantes e muitas vezes pouco conhecidos. Começa os textos sempre sob a mesma forma: "O menino ou a menina que...", um registo que não nasce do acaso, como justifica: "É um estilo para todas as cinquenta figuras porque dava por mim a reler "o menino" ou "a menina" e partia-me a rir porque já estava a falar de uma figura maior, adulta, mais velha do que eu"..Muitos dos atletas sobre os quais escreveu, que surgem no livro retratados em ilustrações da Andrea Ebert, fizeram história no futebol. Não se pode deixar de perguntar se haverá um dia no futuro em que o domínio do futebol se irá eclipsar? "Quero muito viver esse tempo", responde, principalmente face ao que acontece na imprensa nacional em contraponto à estrangeira: "Em França, o L"Equipe está muito mais à frente e já fez manchetes com desportistas internacionais de outras modalidades, como Michael Jordan, Tiger Woods ou Roger Federer, sem esquecer obviamente as primeiras páginas com heróis do seu país, como Alain Prost. Espero que quando o Miguel Oliveira for campeão mundial no MotoGP, que o Benfica ou o Sporting não ganhem um jogo a feijões para dividir ou até concentrar as atenções, como aconteceu na medalha de prata olímpica do ciclista Sérgio Paulinho em 2004 e a manchete foi um golo de João Vilela num jogo particular de verão entre o Estoril e o Benfica.".Entre as figuras inesperadas que estão neste livro estão também treinadores, como José Mourinho e Tomaz Morais, e um bailarino, Marcelino Sambé. A razão é simples, diz: "Todos dão baile à concorrência.".É impossível fugir ao presente mais recente e questiona-se se os festejos da vitória do Sporting revelaram um vírus selvagem que não se considerava existir entre os adeptos do clube ou a infeção já era conhecida? "Na tribo do futebol, vírus selvagem é um pleonasmo sem cura para a infeção", considera. Já quando se pede um julgamento - Ronaldo ou Messi? -, Tovar não evita a dar a sua opinião: "Ronaldo rebenta as balizas, Messi rebenta o futebol.".Quanto ao facto de andar a retratar o desporto há muito tempo, as certezas são outras no que toca ao prazer de como tudo se fazia há uns anos quando comparadas com a rapidez atual: "Prefiro infinitas vezes uma notícia saída de um telex a passo de tartaruga do que um f5 no computador portátil. Sinto saudades dos tempos de camaradagem do jornal Record, ali no Bairro Alto, entre 1995 e 2002, ano em que fomos vendidos a uma empresa com administradores e burocracias várias. Perdeu-se o norte e, infelizmente, ganhou-se a ideia fixa de olhar para os números, só para os números.".Este livro sai no momento em que decorre o Euro 2020 e nas vésperas dos Jogos Olímpicos de Tóquio - o verdadeiro propósito do álbum. Uma coincidência ou os portugueses gostam de folhear o álbum de memórias?.Quando folhear é a palavra de ordem, desfazemo-nos todos. Sabe sempre bem recuar no tempo e avançar no conhecimento. E quantos mais cromos, melhor..As biografias deram todas o mesmo prazer a escrever ou há umas menos entusiasmantes do que outras?.Despachei primeiro o futebol, com Ronaldo, Eusébio, Peyroteo, Gomes, Figo, Mourinho (por esta ordem, sem tirar nem pôr). Fiz nas calmas. Depois entrei nas profundezas da minha ignorância em relação a todos os outros atletas e embrenhei-me de tal forma que, às vezes, o texto já estava o triplo do tamanho. Foi uma viagem entusiasmante, sempre sempre sempre em crescendo. Quando acabei a 50.ª figura - Marcelino Sambé - até festejei em bicos de pés..O critério biográfico foi tão apertado como o dos mínimos para participar nos Jogos Olímpicos?.Quando a editora Diana Garrido me convidou para escrever, só pensei em máximos olímpicos. Seguiu-se o exercício da escrita e, aí, o tal critério teve de ser apertado senão ainda estava a desbundar porque todos os heróis são realmente fascinantes, sobretudo no capítulo da história de vida..Todos os atletas têm o mesmo espaço. Ronaldo não merecia mais do que uma página?.Ora essa, nem pensar. Porque a palavra-chave de qualquer sucesso é o "nós". Vai daí, somos pela igualdade. Somos, quem? Nós, os autores. Nós, os leitores. Nós, os 50 heróis..Destacou todos os que queria ou teve de desempatar por faltar espaço? Quem ficou para trás?.A lista inicial incluía uma série de nomes gatafunhados numa folha A4. Depois, no transporte do papel para o excel, emagreceu para 51 entre 37 senhores e 14 senhoras. Falámos e abdicámos do Cândido de Oliveira, uma figura do futebol como jogador, treinador e selecionador. Já com o livro feito, encontrámos outro nome vistoso de fora: Patrícia Mamona. Se existir outro álbum sobre os heróis, dois já cá cantam..Fazer um álbum com atletas portugueses é tão ambicioso como com estrangeiros?.É mais ambicioso um álbum de portugueses, porque apresentamos heróis de um país mínimo. Quando vejo países pequenos a chegar longe, é o delírio. Aconteceu com Portugal no Euro-2016. Ou com a Croácia no Mundial-2018. Se fizermos zoom, é uma delícia. Carlos Lopes nasceu em Vildemoinhos e é ouro da maratona nos Jogos Olímpicos-1984 (e aos 37 anos de idade). No entanto, se fizesse um álbum com estrangeiros, o primeiro nome que me vem à cabeça é Nadia Comaneci. Uma ginasta de um país fechado sobre si mesmo, campeã olímpica aos 14 anos de idade, com a primeira nota 10 nos Jogos Olímpicos, e, mais importante, só se libertou das amarras da ditadura à custa de uma fuga a pé pelos bosques fronteiriços da Roménia com a Hungria..Afirma que "quem é bom sempre aparece" ao biografar Madjer. Acredita mesmo nessa profecia ou é retórica?.Acredito no talento. O de João Vítor Tavares Saraiva, vulgo Madjer, é sensacional. Um acidente de moto muda-lhe a vida e troca o futebol de 11 pelo de praia. Notabiliza-se pelos golos artísticos, sobretudo pontapés de bicicleta, e é eleito o melhor do mundo nos mesmos anos que Ronaldo e Ricardinho (futsal), em 2005 e 2006..Reencontramos figuras que o tempo quase devorou: Livramento, Joaquim Agostinho, Peyroteo... Só Eusébio é que não "morre"?.Eusébio, sim, é eterno. Como Agostinho, que até tem uma estátua no Alpe D"Huez, onde poucos pedalam sem os bofes de fora. Todos os anos, a estátua é mencionada. Todos os anos, Agostinho é ovacionado. A Peyroteo, jogador com melhor média de golos de todo o sempre, falta-lhe uma estátua. A Livramento, idem. A Carlos Lopes, aspas aspas. E por aí fora. Temos o fascínio de dar nomes de ruas aos nossos heróis. Devíamos era fazer-lhes estátuas. Belas e bem situadas, como a do Marquês de Pombal..Durante a investigação para o livro ainda foi surpreendido por algum facto que desconhecia?.Tantos, tantos, tantos e tantos. Assim de repente, Carlos Resende eleito para a equipa ideal do Mundial de andebol? António Livramento campeão da 2.ª divisão pela equipa do Banco Pinto & Sotto Mayor? É de ficar de boca aberta e, já agora, com pena de ter falhado esses momentos com a intensidade que se impunha. Uns por estar com a cabeça no ar, outros por terem sido antes do meu tempo..Citaçãocitacao"Temos o fascínio de dar nomes de ruas aos nossos heróis. Devíamos era fazer-lhes estátuas. Belas e bem situadas, como a do Marquês de Pombal.".Recusa revelar o seu clube. Porque nenhum o seduz ou se o fizesse ficaria sujeito a pressões?.Sou aquário de nascimento e leão de coração. Bem sei bem sei, é um conflito de interesses, mas aguento-me bem à pressão alta..Os cinquenta heróis que estão no livro são de várias modalidades, no entanto o futebol é o que desperta mais mobilização entre os portugueses. Há uma explicação "científica" para esse interesse?.Não se explica, sente-se. Infelizmente, é palpável o (des)interesse. Até dentro do próprio futebol. Um belo dia, em 2004, o Porto foi campeão mundial. Azar dos azares, o Benfica levou 4-1 do Belenenses no Restelo. Qual foi a manchete? O tombo em vez da glória. Fora do futebol, é tão insensato que mete dó. E a culpa é nossa, de todos nós. Dos jornalistas, dos jornais, e também dos leitores, agora mais interessados na informação chiclete-do-mastiga-e-deita-fora. Posto isto, bons tempos em que o hóquei, o ciclismo e o atletismo entusiasmavam a malta e esgrimiam argumentos com o futebol..Texto de Rui Miguel Tovar.Ilustrações de Andrea Ebert.Editora Nuvem de tinta.120 páginas.Contrariamente ao que é habitual, talvez se deva começar a leitura do mais recente trabalho de Maria Manuel Viana pelas últimas páginas, as das Notas Finais. Não que se fique a saber tudo, mas porque explica o seu método e porque quebrou a promessa de se dedicar apenas à tradução e fugir do espetáculo que é atualmente o lançamento de um livro. Confessa: "Ao longo dos últimos anos, jurei que nunca mais escreveria um livro, que só traduziria os dos escritores que amo", felizmente quebrou a promessa e oferece uma narrativa que seduz..As Evidências Nocturnas não foge à génese habitual na autora, obra que na maioria das vezes nasce de textos escritos por uma razão que não a de terem como destino a encadernação com capa e contracapa e dezenas de páginas entre, e neste caso deve-se a posts num grupo fechado do Facebook, em que ia colocando episódios sobre uma "mulher imaginária durante a epidemia". De seguida, explica, "essa mulher passou a viver comigo 24 horas por dia e a única hipótese de a calar era contar a história dela"..Sorte a do leitor, pois dos posts em Notícias do #quarenteno foi nascendo esta narrativa que percorre acontecimentos reais em meio a uma ficção, como os da Praça Tahrir, faz referências a personagens relacionadas com filmes, como de Hitchcock ou Wim Wenders, faz eco de músicas, como One of Us de Joan Osborne, e introduz diálogos inesperados, como Ce voyage n"a jamais existé, tudo isto de permeio com uma coleção de imagens que confirmam essas evocações... Mais não é preciso ser dito sobre este romance, com múltiplas vozes e cenários, pelo qual o leitor é empurrado página após página e divaga sem arrependimento..Maria Manuel Viana.Editora Teodolito.157 páginas.Sami Michael é um escritor sem obra traduzida para a língua portuguesa, havendo agora a oportunidade de ler um dos seus "sucessos" literários, Um Trompete no Uádi. O jornal israelita Haaretz escreveu sobre o autor que era um "escritor pioneiro que deu voz aos oprimidos em Israel" e o italiano La Repubblica que "é escritor, mas acima de tudo um homem que atravessa duas culturas no centro de um conflito sangrento". Muitas outras citações haveria, no entanto é a narrativa que lhe proporciona estes elogios que interessa e que agora se pode ler, num cenário geográfico que é pouco conhecido dos leitores portugueses, que pouco mais se apercebem dele senão através das constantes notícias trágicas e sem profundidade social..Tudo começa num bairro de Haifa, com a chegada de um novo morador à parte árabe, onde a ação decorre. O recém-chegado é judeu e tem a particularidade de tocar trompete durante a noite. Conforme o livro vai andando, pressentem-se os abalos de toda a espécie do conflito israelo-árabe que abalou o Líbano em 1982..Sami Michael conhece bem aqueles territórios sem paz e tendo nascido em Bagdade melhor desenha as situações que dividem a humanidade naquelas partes do mundo. Não esquece as ilusões provocadas pelas paixões, amorosas e ideológicas, nem as barreiras que as religiões e as tradições colocam. A narrativa vai em crescendo e descreve as diferenças que não se conseguem calar há séculos, nada melhor para quem tem mão no que escreve..Sami Michael.Editora Elsinore.288 páginas