Rui Loureiro: "A componente científica foi extremamente importante nas relações luso-chinesas"

O diretor do Instituto Superior Teixeira Gomes destaca a fórmula ímpar de Macau, a influência dos jesuítas e o papel de Portugal a difundir informação na Europa sobre o império chinês.
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Em 1517, Portugal envia uma embaixada a Cantão e três anos depois a Pequim. Só quatro décadas mais tarde é que portugueses e chineses chegaram a acordo sobre o seu relacionamento. Porquê?
A descoberta mais importante que os portugueses fazem é que é mais lucrativo fazer comércio dentro da Ásia do que em direção a Portugal. Uma viagem de navio do Japão a Macau demorava duas semanas e fazia o mesmo tipo de negócio e de lucro do que da Índia para Lisboa. Isso explica por que Afonso de Albuquerque vai tentar capturar bases em pontos estratégicos: Goa, Ormuz, Malaca. Depois dá-se a coincidência de os grandes Estados asiáticos estarem virados para o interior. O comércio marítimo era para pessoas de baixa qualificação e estrangeiros e os portugueses inserem-se nesse meio. Quando os portugueses chegam à China, a ideia é reproduzirem esse modelo: tentarem conquistar uma pequena porção de território ou estabelecer o controlo militar e político de um território e construir uma fortaleza ou feitoria. Mas na China as condições são diferentes. Era um império poderosíssimo, extremamente centralizado, que não cedia porção nenhuma de território. As primeiras tentativas falharam.

Qual foi a solução encontrada pelo portugueses para serem aceites pelos chineses?
Foi uma aprendizagem que demorou 40 anos. A primeira embaixada, de Tomé Pires, não o era verdadeiramente. Os chineses só admitiam embaixadas de países tributários, que prestavam vassalagem. Os soberanos europeus tinham uma diplomacia que era de igual para igual, e isto na China era impossível. Tomé Pires levava uma carta que era feita nesses moldes e os portugueses foram expulsos. A pouco e pouco vão-se envolvendo nas redes de comércio através de Malaca e fizeram muitos contactos com chineses ultramarinos na zona da Malásia e de Sião. E depois há a chegada ao Japão, um grande produtor de prata, metal que tinha um valor elevadíssimo na China. Do outro lado, os japoneses gostavam muito da seda chinesa.

Os dois países não faziam o comércio diretamente porquê?
A China era aquele império muito centralizado e o Japão estava a atravessar uma guerra civil. Em períodos de paz, os samurais de- sempregados iam piratear nas costas da China, até que esta proibiu os japoneses de frequentarem o território chinês. Os portugueses aproveitam esta conjuntura. E a partir de certa altura, por volta de 1550, os chineses de Cantão descobrem que os portugueses tinham acesso a produtos que despertavam muito interesse. É aí que aparece Macau, um compromisso entre as várias partes, uma win-win situation. Os mandarins tinham acesso a produtos de luxo, com os quais podiam lubrificar as carreiras no funcionalismo público, os portugueses pagavam impostos e faziam comércio porque tinham acesso às sedas que levavam para o Japão. Simultaneamente, como os portugueses tinham navios e armamento muito poderosos conseguiram limpar a zona da pirataria. É nestas circunstâncias que nasce Macau. Quando a coroa portuguesa dá pela situação nomeia um capitão para beneficiar da situação. Até ao século XX foi o segredo de Macau, não havia prejudicados.

A fórmula é especial, uma vez que Macau, ao contrário de Hong Kong, não era uma colónia.
É uma situação absolutamente extraordinária e irrepetível. Os espanhóis vão tentar a mesma solução nas Filipinas, mas não conseguem, os holandeses também não.

Em que se baseava essa fórmula?
As autoridades de Macau só tinham jurisdição sobre os portugueses e havia inspeções regulares de mandarins para o verificar. Os portugueses estavam autorizados a viver lá desde que respeitassem uma série de regras. Pagavam uma taxa, foro do chão. Era uma espécie de suborno. Os portugueses iam a Cantão às grandes feiras anuais e as autoridades provinciais eram lubrificadas com prata ou âmbar cinzento. Por outro lado, salvo erro até 1620, estiveram proibidos de construir muralhas. São autorizados depois de um grande ataque a Macau por parte dos holandeses, mas para proteção do lado do mar.

Que papel têm os jesuítas na manutenção dessa fórmula?
A Companhia de Jesus apanhou boleia dos portugueses para o Oriente e espalhou-se muito rapidamente por toda a Ásia. Francisco Xavier, que morreu perto de Macau, concluiu que os povos mais cultos e civilizados eram os japoneses e os chineses, eram povos letrados. Tem o projeto mirífico de tentar converter o imperador chinês e a partir daí o Extremo Oriente todo. A partir de 1580 há uma série de jesuítas que em Macau começam a aprender a língua chinesa. Mais tarde concluem que só conseguem dialogar se, além de falarem chinês, se vestirem e adotarem as mesmas práticas na vida quotidiana. E assim conseguem alguma influência, até em Pequim. O jesuíta Matteo Ricci é contratado pelo imperador para trabalhar na reforma do calendário. A partir de 1600 há uma comunidade jesuíta que intercede sempre a favor de Macau.

Nos primeiros dois séculos de contactos entre Portugal e a China, esta vive sob duas dinastias. As relações são afetadas de alguma forma com essa mudança dinástica?
Há uma guerra civil terrível a partir dos anos 1630 e a dinastia Ming acaba. Os manchus vêm de fora da China, mas vão rapidamente sinificar-se, vão adquirir os mesmos hábitos que os Ming. Os jesuítas passam por esse período relativamente incólumes, não perdem prestígio. Em Macau há alguns problemas, mas que vão sendo resolvidos. Chegou a haver uma ordem para evacuar todo o litoral chinês para impedir ataques do exterior, mas Macau consegue sobreviver devido à sua importância económica na região, pela obtenção de produtos europeus de luxo, como relógios e vidros, e pelo apoio dos jesuítas.

Além do comércio, o que trouxe a relação luso-chinesa?
A componente científica foi extremamente importante. Os jesuítas traduzem para chinês obras de matemática, geometria, astronomia. Há uma grande comunidade, embora muitos jesuítas não sejam portugueses. Há intercâmbios de hábitos de consumo, como, por exemplo, o consumo de chá em Portugal. Também os portugueses introduziram muitas plantas americanas no sul da China. Mas sobretudo a importância foi económica e comercial, de parte a parte.

Portugal trouxe também para a Europa uma nova imagem dos chineses.
Os europeus não tinham informações desde o tempo de Marco Polo e este esteve na China mongol, que é distinta. Aliás, ainda hoje se discute se Marco Polo esteve na China, porque não menciona o chá, o papel-moeda ou a Grande Muralha. Mas através dos escritos portugueses há uma moda chinesa na Europa, uma sinofilia, que se materializa na construção de pavilhões chineses. Para não falar nas porcelanas, transportadas às toneladas. Os europeus apercebem-se de que é um império gigantesco que funciona sobre rodas. E quem tinha poder, os mandarins, eram os homens letrados, os que sabiam mais. Isto na Europa era uma coisa impossível, e entusiasma os iluministas.

Doutorado em História pela Universidade de Lisboa, Rui Loureiro especializou-se nos contactos dos portugueses no mundo asiático dos séculos XVI e XVII.

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