Rui Horta leva-nos até Cabul para descobrirmos os nossos limites
A porta do elevador abre-se e estamos em Cabul, no Afeganistão. Que é como diz: estou num lugar de perigo. E agora?
Poderia ser um filme de Hollywood mas é Cabul, o espetáculo de Rui Horta, que se estreou em outubro no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, e chega agora ao Teatro São Luiz, em Lisboa. Os pontos de partida para Cabul foram, por um lado, a possibilidade de trabalhar com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, de que Rui Horta é nesta temporada artista associado, e, por outro lado, o texto de A Missão, de Heiner Müller. O coreógrafo faz referência, especificamente, à cena do elevador, que é a parte que o "entusiasma mais naquela obra fantástica". É a cena em que Sasportas se encontra no elevador, de fato e gravata, como quem vai para o escritório, para muito provavelmente ir ter com o chefe, talvez vá ser despedido, talvez vá ser aumentado, vai pensando com os seus botões e, de repente, a porta do elevador abre-se e ele está no Peru. "É uma viagem kafkiana", diz Rui Horta.
No palco, também temos um homem, interpretado por Pedro Gil, que chega "espavorido, como se tivesse acabado de acordar. Não se percebe bem se nos conta um desejo, um sonho ou uma quimera qualquer. A certa altura, ele mete a mão no bolso do sobretudo e tira de lá um papel que diz "entre no elevador"." Aqui, entra o monólogo de Sasportas. Só que, quando ele sai do elevador, está em Cabul.
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Colocarmo-nos em perigo
"Quando o texto foi escrito [1979], o Peru devia ser um dos sítios mais perigosos do planeta. Eu chamei-lhe Cabul. Poderia ser Rafah [na Faixa de Gaza]. Ou outra cidade." É indiferente o nome que se dá, o importante é que Cabul é uma metáfora para zona de perigo. "Cabul deve ser um dos sítios mais perigosos do mundo, um sítio onde só por saíres de casa e andares a direito já estás a correr um risco."
Este homem que está no palco faz uma viagem que é, obviamente, uma missão de autoconhecimento, "como é a missão de qualquer criador": "Esta é a missão do Rui Horta, a missão que eu crio a mim mesmo nesta obra é a missão de qualquer ser humano, que é pôr-se num lugar de risco, ir até ao limite, porque só quando testamos os nossos limites é que nos conhecemos verdadeiramente e sabemos do que somos capazes."
"Eu sinto-me muitas vezes em Cabul. À minha maneira", diz o coreógrafo. Porque, no seu dia a dia, toma muitas vezes decisões que o colocam numa situação de fragilidade. "Portugal é um país cheio de medos. Existe uma cultura de autoproteção muito complacente com a autoridade, de cima para baixo, existe o chefe do chefe do chefe, e nós estamos habituados a estar na base da pirâmide e a ter medo do que está acima de nós. Uma pessoa colocar-se em situação de rutura, de descontinuidade, de independência é, tomando esta metáfora, a maior situação de perigo que pode haver, mas é também a mais bela e a mais honrosa." É Cabul. Um lugar de conflito, de rutura, de isolamento, um lugar onde nos procuramos a nós mesmos.
É nesse lugar que está a personagem de Pedro Gil, mas também onde estão todos os espectadores. O espetáculo decorre no palco - no palco fechado, um dispositivo cénico com 180 paletes de madeira e 150 cadeiras rotativas para que os espectadores se possam virar e ver o ator, onde quer que ele esteja. "O público está no meio, dentro da claustrofobia cénica, dentro do elevador, absolutamente imerso na narrativa - ou melhor, na não-narrativa, porque o texto não tem respostas, não sabemos muito bem quem, como, porquê." Rui Horta regressa assim às "obras imersivas" que fez no início dos anos 2000.
Uma ferida na alma
O coreógrafo acredita que toda a criação artística surge de "uma ferida na alma" que o criador vai tentar resolver, algo que o atormenta mas que lhe dá força para tentar fazer a obra de arte perfeita. Inantigível, talvez. Mas alcancá-la é a missão de Rui Horta. "Para mim esta peça também é um ato de coragem", diz. "Vindo do movimento, o teatro para mim é sempre periférico, tal como a música. Mas eu gosto de trabalhar com encenação, com texto, com música, é algo que me fascina. É uma situação de fragilidade mas ao mesmo tempo de frescura. E o que eu quero, depois de tudo o que já fiz no meu percurso, é colocar-me em situação de Cabul, de desconforto." E a maior situação de desconforto é esta: escrever o texto da peça, trabalhar com uma orquestra e com um ator (não um bailarino) que é já um cúmplice de aventuras passadas (Multiplex, em 2013) e futuras (Romeo e Julieta, a peça que se estreia em abril com a Companhia Nacional de Bailado).
O ator é só um mas está acompanhado pela Orquestra Metropolitana. Trinta músicos, dirigidos por Pedro Amaral, interpretam duas obras do compositor norte-americano Morton Feldman: Piano and String Quartet e For Samuel Beckett. "É uma experiência incrível", diz Rui Horta. "Há muito tempo que queria usar a música de Feldman mas queria uma sonoridade mais intensa, não tão íntima. E a orquestra conseguiu isso."