Ruben Alves: "A minha mãe juntava a família em Paris. À mesa, era um caos, sempre"

Ninguém sabia em Portugal que ele existia, e em França poucos sabiam que tinha origem portuguesa. Não porque ele a escondesse - pelo contrário, divertia-se a devolver aos colegas da escola as frases do tipo "a tua mãe tem bigode".
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Só falava português nas férias que passava cá com familiares, para se fazer entender, mas agora, aos 35 anos, já quase nem hesita para se exprimir na língua dos pais, mesmo quando fala de emoções. Sim, até há dois anos ninguém sabia em Portugal que ele, nascido e criado em Paris, existia e que ia ter a coragem e o descaramento de fazer um filme francês sobre uma porteira e um pedreiro, sobre os filhos deles, sobre as hesitações e contradições de todos. Conseguiu financiamento em França com o mesmo descaramento. Quando a diretora da televisão torceu o nariz a uma história de imigrantes, ele perguntou-lhe se se sabia quem tinha construído o edifício onde estavam. Pois, tinham sido os portugueses, nos anos 1960. A estreia do filme foi um caso mediático: metade dos convidados eram maçons e concierges e choraram, riram e bateram tantas palmas que a sala Gaumont Marignan dos Champs Élysées quase foi abaixo. "Deixei de ter vergonha de dizer que sou português", disseram-lhe. Agora está feliz a produzir um documentário sobre um outro português que viveu em Paris, entre 1907 e 1914. O realizador é o sócio dele, Christophe Fonseca, e esse emigrante de há cem anos chamava-se Amadeo de Souza-Cardoso, o pintor de Manhufe, Amarante, que morreu demasiado cedo. Inacreditável, diz Ruben muitas vezes, e o adjetivo aplica-se à obra de Amadeo, estrela principal da programação do Grand Palais em 2016. Ruben está sempre a inventar coisas para fazer, e irrita-se quando lhe dizem "esse projeto é muito ambicioso" ou que a televisão em Portugal tem de ser "assim".

Desde que fez A Gaiola Dourada ficou mais próximo de Portugal?

Não foi o filme que me trouxe a revelação de Portugal, tinha feito esse percurso desde a adolescência. Desde 2007 tenho vindo muitas vezes e tenho passado aqui meses de seguida, o que não acontecia antes. Comprei uma casa e, como estava em obras, fiquei e aproveitei para trabalhar. Escrevi cá um guião - antes de A Gaiola Dourada - que afinal não aproveitei.

É o tal que foi mudado e transformado na Gaiola Dourada?

Era sobre os expatriados franceses em Lisboa, porque queria gravar cá. Depois disseram-me - isso é giro, mas por que não escreves sobre os portugueses em França? E acabei por fazer isso. Depois, a Gaiola ajudou-me em termos profissionais, deu para perceber o que se passa aqui, conhecer as pessoas, os produtores.

A questão da relação ambígua dos filhos de emigrantes com Portugal, com alguma vergonha perante os franceses, é muito comum. Consigo foi assim?

Não, nada. Mas é uma realidade que observei muito, que ainda existe. Está um bocadinho a mudar, agora que Portugal está um pouco mais na moda, que se fala mais, que já não é aquela coisa... Recebi vários testemunhos de jovens a dizer-me "obrigado, agora já não tenho vergonha de dizer que sou português". Mas a minha relação não era essa, de todo. Eu e a minha irmã sempre adorámos Portugal, vínhamos de férias todos os anos. Para nós era a liberdade.

Tinham cá família?

A minha mãe cresceu em Lisboa e, então, tínhamos várias famílias espalhadas por aqui. E depois há a família do meu pai, que é de Guimarães, mas que víamos menos. Eu não tinha esse preconceito. São sentimentos que na adolescência ou na infância podem ter acontecido. Se calhar, não dizer num momento que a mãe é a porteira ou que o pai... Mas assumi muito rapidamente tudo, porque peguei pelos valores fantásticos destas pessoas trabalhadoras. Por isso, quis homenageá-las com um filme. Aliás, eu brincava muito, na escola, com as coisas que os miúdos podiam dizer. Essa coisa dos portugueses. "A tua mãe está cheia de pelos", este género de coisas. Em vez de ficar magoado e chorar, pegava nisso para brincar com eles e devolver, lançar uma brincadeira acerca dos franceses.

Qual é a sua língua materna?

Eu falei sempre francês. Nasci em Paris. Tive a minha educação, com os meus pais a falarem-me português e francês, ou seja, eles recorrem muito às duas, mas eu sempre respondi em francês. Nunca falei português com eles. Só falava português durante as férias de verão, aqui, com família, com primos, era obrigatório porque eles não percebiam. Os meus pais incentivavam-me: "Tens de falar com os teus primos." Mas nunca fui à escola portuguesa, então tenho este atraso a falar português.

Vi uma entrevista sua em espanhol e vi que fala fluentemente.

Gosto da língua espanhola. Tive amigos que adorava, uns de Espanha e outros do México. Gosto muito de línguas.

Talvez por ter crescido nessa dupla língua?

Isso ajuda imenso. Ouvir uma língua em casa e falar outra na escola, com os amigos, desde pequenino.

A Gaiola Dourada é a sua primeira longa-metragem, mas tinha feito já cinema antes, como ator.

Como ator, porque ainda não tinha assumido completamente o lado da realização.

Como é que lá chegou? Não deve ser muito fácil ser ator em França sendo meio estrangeiro.

Não, isso não. Para já, porque ninguém percebeu, ninguém sabia dessa origem. Agora, com A Gaiola Dourada é que tive artigos em que me chamaram "le réalisateur franco-portugais".

A sua nacionalidade é francesa?

É francesa, sim, e isso nunca tinha acontecido. Ou seja, eu era mesmo francês. Relacionam o apelido Alves com Portugal, embora seja mais comum o Silva ou o Costa, mas Ruben em França é um nome muito espalhado pelos judeus. Pensavam que era israelita ou judeu. Então, nunca tive esse problema. É mesmo mais pela luta, porque há muitos a querer ser ator.

Como é que se chega lá?

Um grande amigo meu de infância, o Hugo Gélin, o meu produtor d"A Gaiola Dourada é que fez essa ligação, porque a família dele estava no cinema. Desde pequeninos, eu e ele brincávamos e tínhamos este gosto pelo espetáculo, por dar emoção às pessoas. Na escola primária já montávamos espetáculos no recreio. Toda a escola adorava. Ele pedia ao pai para lhe emprestar uma câmara de 8mm e fazíamos uns filmes durante as férias da Páscoa ou de inverno... Porque no verão eu vinha sempre aqui.

E ele não vinha consigo?

Ele veio duas ou três vezes, e continua a vir agora, no mês de agosto. Alugou uma casa ao pé da Comporta, vem com os amigos todos. Adora vir. Nessa altura fazíamos uns filmes: escrevíamos um guião, ao longo do ano, e depois gravávamos, fazíamos as personagens todas, e no mês de setembro, na rentrée, fazíamos uma projeção para 40 ou 50 amigos. Encontrávamo--nos sempre, numa grande divisão da casa. Tínhamos 13 anos ou 14 anos e já estávamos a fazer projeções, com convites. Geríamos tudo.

Eram produtores, realizadores, atores, faziam tudo?

É por isso, acho eu, que, no meu filme, eu estava em todo o lado, e as pessoas não estavam habituadas: "Ruben, para! Senta-te. A gente vai fazer isso. Pedes e a gente vai fazer." Mas eu não conseguia. Depois eu ia, fazia uma coisa no cabelo, mexia num acessório, ia pôr não sei quê e as pessoas ficavam espantadas. Porque há chefes para tudo, e eu tenho o hábito de fazer tudo. Fomos crescendo nisso e adorávamos. Fazíamos sketches na rua, nas lojas, as coisas que a gente fez! Isso vem mesmo da infância. E quando se percebe que profissionalmente isso é um trabalho... Eu percebi na adolescência: "Afinal, tudo o que a gente faz é um trabalho e pagam-te para isso! Isso é incrível!"

Podia ser pago para fazer aquilo de que gostava?

Para fazer as palhaçadas que a gente fazia desde sempre. Lembro-me, mesmo, desse momento da adolescência, 16 anos, a dizer: "Ah! C"est incroyable! Isto pode ser um trabalho!" Então lá comecei a fazer figuração na televisão, a ver os plateaux , a interessar-me. Aos 18 anos entrei na escola de teatro, fiz uma formação completa de três anos, muito gira. Nem era tanto pela formação; era pela convivência, porque eu adoro trabalhar em grupo. E acho que é o melhor.

O cinema não é um trabalho solitário.

Nada! Ninguém pode fazer uma coisa sozinho. O realizador é o maestro, mas tens os instrumentos todos e é obrigatório. E isso ajudou... Quer dizer, eu passei três anos fantásticos porque adoro isso. "Ah, bora fazer um espetáculo."

Qual foi a escola?

Fiz várias. Fiz dois anos no Studio Alain de Bock, que é método Stanislavski, um bocado Actors Studio. Fiz, também, Actors Studio, uns meses, depois fiz uma outra escola, mais de cinema, o Studio Pygmalion. Aí, era a câmara e as emoções. Sempre como ator.

A imaginar como seria o outro lado?

Sim, sempre. Porque eu tinha sempre feito isso. Ou seja, para mim, ator era assim, mas, depois, virar e ver a câmara e dizer: "Não, põe aqui." Para mim, era tudo igual. Pegávamos na câmara, fazíamos de ator, fazíamos a luz, fazíamos o som. Para mim, era criar alguma coisa, deste lado e do outro lado. Gosto disso tudo.

Qual foi o primeiro grande projeto?

Aos 20 anos, com o Hugo, realizámos uma curta-metragem que teve bastante sucesso. É uma história muito simples: uma câmara que está dentro de um multibanco, no dia da passagem do franco para o euro. Ou seja, filma as pessoas que vêm retirar euros pela primeira vez. Um dia inteiro, desde que a máquina acorda até ao fim. Começa tudo a enlouquecer. O que queríamos era trabalhar com os atores de que gostávamos. Fomos a Cannes, fomos a vários festivais, porque tivemos muitos atores conhecidos. Eles aceitaram, nós escrevemos, ensaiámos com eles, era uma coisa com ritmo, muito gira. Alguns nunca tinham feito cinema, como o Jean Dujardin - que hoje é muito conhecido e teve um Óscar [O Artista, 2011, real. Michel Hazanavicius] -, que fez a primeira ficção connosco. Ele fazia televisão e ligámos-lhe, estava de férias mas conseguimos o telefone.

Não foi um grande atrevimento?

Temos sempre a ambição de fazer coisas giras e de tentar melhor. Ouvimos, muitas vezes, esta frase terrível: "Isso é muito ambicioso." Não percebíamos. "Mas o que é isto? Se estivéssemos nos Estados Unidos, não era nada assim." Ele adora os Estados Unidos, mas eu sou muito europeu. Fiz uma tentativa, aos 25 anos, em Nova Iorque. Estive em aulas de teatro e, um dia, pensei: "Isto não é para mim."

Porquê?

Porque falta peso. Falta densidade. Eles têm uma visão, uma energia no trabalho, uma perfeição nas coisas, isso é maravilhoso. Mas falta o peso que a Europa tem, que Portugal tem. Esta cultura faz-me falta.

É difícil conseguir essa densidade como realizador?

Não é fácil. Há pessoas que vêm dizer "ah, OK, a Gaiola é tipo comédia, é ligeiro". É o mais difícil: passar uma ideia simples, uma emoção leve, uma coisa básica, de forma acessível para as pessoas apanharem com um sorriso e depois pensarem. Isso é a minha ideia do cinema, de tudo, da criação. Nós dizemos no teatro e no cinema que é muito mais fácil fazer chorar do que fazer rir. Com uma coisa densa é muito mais fácil chegarem as lágrimas aos olhos. Fazer rir uma pessoa e com algo por trás é o que eu pretendo. Ficar a pensar. Não é fácil, está sempre ali, no fio, para não cair na patetice.

Há uma cena que sei que foi difícil de fazer, a do almoço, quando pensou "mas onde é que me vim meter?"

Uma coisa é pensar a cena e vivê-la, e outra coisa é filmá-la. E filmar uma cena de jantar ou de almoço é difícil, por causa dos raccords, dos olhares. Tudo tem de ser bem estudado e orgânico. E era a primeira vez que os atores se juntavam todos.

Está a falar do almoço no Douro, no final?

Não, do almoço em Paris, com a família toda. Mas também houve esse almoço no Douro, com a mesa gigante. Aí, basicamente deixei correr tudo em liberdade. Disse "faz isto, faz aquilo", e deixei gravar. Depois fui buscar os momentos. Era uma loucura, tanta gente, deixámos viver.

Uma coisa caótica à portuguesa?

Ah, completamente. Estava a falar do almoço no início, onde ela diz que tem a carta do banco. Era a primeira vez que os dez atores se juntavam. Depois havia bacalhau na mesa, aaaaahhhh! Estava tudo histérico, aos gritos... a família portuguesa. E havia miúdos e um cão. "Onde é que eu me fui meter?" Numa primeira obra nunca se grava com cães e com miúdos, dizem-nos na escola.

Era essa a experiência que tinha na sua família, quando vinha de férias?

Sim, e não era só nas férias. A minha mãe recriava isso nos natais, fim do ano, estas datas importantes. Fazia almoços ou jantares em casa com mesas que o meu pai punha greeeeh-greeeeh [imita o som de uma serra elétrica], uma mesa com uma prancha em cima para ficar maior, porque eram tantas pessoas. Chegávamos a ter três tios e três tias com os filhos. Não imagina, éramos para aí uns 20 a almoçar. O caos, sempre, sempre. Toda a gente a falar, o tio [faz voz grossa] que quer falar mais forte, as primas a rir... Porque há uns tios mais engraçados, mais castiços.

Tem tios assim?

Aliás, há um tio que... Não pus isso no filme, foi cortado, infelizmente. Muitas coisas foram cortadas por causa do ritmo. E havia uma cena engraçadíssima , antes do jantar na casa da porteira com os pais franceses. O miúdo sai com uns amigos:"Vou jantar ao McDonald"s [pronuncia mágdoná]." E o pai diz: "Mágdoná, Mágdoná! Tu ainda vais apanhar doenças com isso, com essas coisas." E depois ele olha para ele e diz: "E não sabes vestir uma coisa decente, pareces um vagabundo", porque ele está com umas calças de ganga rasgadas. "Laisse tomber. Isso é a moda, pai. Não percebes nada." "Isso é moda, estar todo roto? Então, quando eu tinha a tua idade, eu já estava na moda há muito tempo, porque só tinha um par de calças e estavam rasgadas." E insiste: "Ainda tu não tinhas nascido e eu já estava na moda!" [risos] E na minha família era assim, exatamente, essas conversas super-castiças. Convivíamos mesmo. Tenho muitas saudades de grupos assim, de família.

Na estreia do filme em Paris exigiu que metade dos convidados fossem portugueses. Como foi?

Pedi que a estreia fosse no cinema Gaumont Marignan dos Champs Élysées, porque era o cinema da minha infância. Não fazia sentido fazer uma estreia com people que costuma ir às estreias, vão lá, criticam e são fotografados. Isso faz parte da indústria do cinema e não há problema nenhum, eu faço. Mas esse filme foi feito para os portugueses em França, era normal homenageá-los, e eles nunca são convidados neste género de coisas. Sobretudo elas. As porteiras destes bairros são as guardiãs de tudo, sabem os segredos todos, conhecem os prédios bonitos. Serem convidadas, elas e os maridos, foi uma emoção, estavam supercontentes. O telejornal do Canal 1, da TF1, fez uma reportagem e seguiu uma delas. Achei que era normal tê-los na estreia. Mas sou eu, isso sou eu. Evoluo com o meu tempo, com o que acontece, mas estou sempre muito ligado ao humano.

Os seus pais foram as raízes de A Gaiola Dourada. Como é que reagiram?

Muito bem. Senti que a minha mãe estava muito orgulhosa de eu ter tido tanto trabalho para este resultado. O meu pai estava a dez mil passos do que eu estava a fazer, não sabia, acha que me descobriu através do filme e percebeu o meu trabalho. Não era uma coisa concreta ou se calhar não o tocava e este filme tocou, porque ele reviu-se, fez ali eco. À volta dele outros amigos viram o filme, falaram e ele pôde argumentar sobre o meu trabalho. E acho que também sentiu muito orgulho.

Era uma espécie de filho que faz o que lhe apetece, um artista?

Sim. A minha mãe é muito mais aberta, mais informada sobre as artes. O meu pai tem outra vida. Para ele era muito distante, era como fazer de palhaço, porque ele vê-me desde pequenino com o meu amigo de infância Hugo Gélin a fazer isso.

Trabalham ambos?

O meu pai agora está na reforma mas sempre a fazer uma obra, sempre em construção. Nunca está parado a desfrutar disso, não consegue. A minha mãe continua a ser porteira em Paris.Vai parar para o ano e vêm para cá viver, para perto de Lisboa.

Está a viver em Lisboa e tem muitos amigos. Foi muito rápido.

Não foi rápido porque o português não se entrega assim tão facilmente. O francês, no início, é super-distante mas depois dá mais e é um intercâmbio mais fácil. Com o português parece tudo mais fácil - "vamos beber um copo" -, mas, depois, manter isso é mais difícil. Só agora, com mais tempo, posso dizer que tenho um núcleo de amigos.

São todos da área do cinema?

Não. Para o meu equilíbrio, preciso de pessoas completamente diferentes. Tenho uma base muito forte de família. Tenho uma prima, de quem gosto muito, que foi sempre a minha ligação forte em Portugal e que me ajuda em várias coisas, tem uma visão desperta e aguda de cultura, de várias coisas. Montei uma produtora, a Imagina Produções, com um lusodescendente e com o Duarte Neves, um português que sempre esteve na área da criação. Tem uma web série muito gira chamada A. Lusitanicus, que está a desenvolver. Está na web. Fiz o episódio-piloto com o João Manzarra, há uns quatro anos.

E agora tem o painel da Amália em Alfama, feito pelo Vhils, que as pessoas podem pisar. Uma produção sua.

A ideia era materializar o que é imaterial, o património imaterial que é o fado. Porque o fado é urbano, está nas paredes de Lisboa, nas casas de fado, a cidade transpira fado. O mais engraçado é que as guardiãs do bairro dizem-me: "Os miúdos vêm aqui, querem subir, há uns de skate mas a gente não deixa. Isso não pode ser. Ah, temos um trabalhão aqui, com isto, agora!" E eu rio-me com elas:"Mas o Vhils disse que as pessoas podiam fazer o que quisessem." "Então, os miúdos podem andar de skate, mas os adultos não!" Ó pá, eu adoro isso! Elas são fabulosas. De cada vez que vou lá fazer uma entrevista ou passo por lá, estão lá sempre. "Vieram pôr verniz, ontem. E passou-se isto e isto e isto." Sei tudo.

Apropriaram-se mesmo?

Na inauguração, o que mais me emocionou foi a ligação com os moradores de Alfama. Eles estavam lá em cima a ver. O painel estava baço, com cimento, não estava limpo como eu queria - ainda não tinham posto o verniz. Eu achava bonito pôr água a correr, o Vhils tinha falado na ideia da Amália a chorar quando chovesse. Olhei para cima, para uma senhora, e pedi-lhe por gestos que trouxesse água. E foi maravilhoso porque ela olhou, desenrascou, o homem de chapéu foi buscar e em dez segundos tinha um garrafão de cinco litros. Lá em baixo diziam "não podes, olha os sapatos do senhor presidente"... Fiz sinal e começaram a deitar a água. E a Amália ficou a ver-se muito melhor. Esses são os momentos privilegiados. É assim: a gente faz isso para eles, não é? Eu estou a fazer isto para dar emoção a um público, não é para mim nem para os meus amigos, ou só para os meus pais. Se o público reage, para mim é ganho. Não faço isso para a glória ou para o dinheiro, se não fazia outras coisas e tinha menos dores de cabeça.

Produziu um disco de homenagem à Amália e acabou a fazer um documentário que não estava programado.

À partida, não. Pensei: vou mergulhar no fado, porque não com imagens? É sobre o fado urbano, sobre o que é que se está a passar hoje com a nova geração. Não tem nada a ver com o disco nem com a Amália. É mesmo uma coisa mais geral. Foi por isso que eu criei a Imagina Produções, com o Duarte Neves e com o Christophe Fonseca, luso-descendente como eu. Desde pequeninos que gostamos de vender Portugal de uma maneira diferente. Não estamos com a bandeira na mão, não vamos a festas comunitárias. Eu nunca tive amigos portugueses em França.

Parece-me que anda à procura de mais qualquer coisa, não é?

Sim, claro. O que mudou com A Gaiola não foi a minha relação com Portugal mas a minha abertura e a minha vontade de trabalhar cá, de testar, de ver como é que se passa, de investir cá. Estar aqui mas estar com um pé fora, ou mesmo do outro lado, para fazer uma ponte, sempre com coproduções em França. A portugalidade que ponho em primeiro plano é um desejo, uma necessidade que tenho neste momento. E também porque é este o momento. Não é daqui a três anos que vou fazer um documentário sobre o fado e o que se está a passar agora. Como moro em Paris, estou sempre em referência ao público francês que está atento a isto, quer isto agora. É agora que temos de mostrar.

Que projetos novos tem?

O próximo documentário que vou produzir está a ser realizado pelo meu sócio Christophe Fonseca e vai ser muito importante ao nível da arte portuguesa na cena internacional. Vai ser uma revelação sobre o Amadeo de Souza--Cardoso [1887-1918]. Os especialistas estão a descobrir agora em Paris o trabalho inacreditável dele e estão a rescrever a história de arte a uma nova luz. Em março de 2016, vai haver uma grande exposição dele no Grand Palais, em Paris. Estou muito feliz com este projeto.

E quando vai fazer uma nova longa-metragem?

Vou retomar o meu filme. Pus em pausa a escrita do argumento para resolver a produtora, fazer o documentário, o disco, porque não conseguia escrever ao mesmo tempo. O filme está sempre a evoluir e de uma certa forma não tem nada a ver com as raízes portuguesas. Mas há sempre uma ligação, talvez filmar aqui, uma personagem que tem a ver com... Estou a ponderar várias propostas de encomendas e algumas estou a recusar porque preciso de apropriar-me, de escrever uma história minha.

Para escrever é melhor estar em Lisboa ou em Paris?

Em Paris. Eu pensava que era em Lisboa, proporciona-se tudo mais porque há calma, luz, sítios fantásticos, mas não consigo.

Há muitas solicitações?

Exato, há muita coisa, depois há calor, depois apetece sair, depois é a praia. Em Paris vou para o escritório e fico lá o dia todo. Se calhar é porque ainda não tenho aqui um escritório. Estou a trabalhar mas está a ser difícil encontrar o ritmo.

Esteve no Festival de Músicas do Mundo, em Sines, por causa do documentário sobre o fado e a nova geração?

Fui acompanhar o Ricardo Ribeiro e estive a filmar.

Aquele festival é um Portugal que não tem nada a ver com o que conhece de Lisboa?

É verdade. Achava interessante ir lá para recolher as impressões de um público fora do fado, um público que ouve música do mundo, muito rasta, muito alternativo, super open mind. Interessava-me ir ver como é que este público, que é maioritariamente português, ouvia um fadista e o que ouvem, como vivem isso. Foi muito interessante o feedback da nova geração, todos freaks, a falar de fado. Fui surpreendido duas ou três vezes por jovens de 20 ou 21 anos, pela forma como falam das raízes deles, da cultura, do fado, fiquei superimpressionado, foi muito tocante. Sou sempre muito otimista quanto à nova geração. Além de ser fatalista porque sou português e é obrigatório, não sou pessimista.

É fatalista?

Sou fatalista, mesmo muito, mas ao mesmo tempo tenho umas coisas de otimismo. Esta nova geração é inacreditável. Estive a passar uns dias com amigos meus de França que têm filhos, um miúdo de 4 anos e uma de 7. É assustador como é que hoje eles raciocinam, a rapidez, até mete medo. Eu não pensava assim naquela idade. Eles pegam no iPad, sabem meter códigos, fazer uma playlist, fiquei parvo. Mas há um raciocínio mesmo, além de haver uma certa pobreza de conhecimentos, e cada vez mais, relativamente ao que os nossos pais e avós diziam - que tinha de se escrever muito bem, não fazer erros ortográficos, saber tudo da história.

Onde é que está o otimismo?

Sou otimista quando oiço o que ouvi neste festival: uma sensibilidade, uma inteligência mais orgânica, uma inteligência que traduz bem o que estamos a viver com a mundialização. Tudo acontece muito rápido, a identidade está a perder-se, uma coisa violenta. E no meio disso estão os jovens, com problemas ligados à sida, por exemplo. A relação com o sentimento e o amor já não é a mesma coisa, já não se pode ter uma ligação emocional sem pensar "cuidado!" Isso é triste. Têm de pensar, têm de proteger-se. Vivem um momento de cuidado, tanta complicação, têm de desenvolver aquela coisa do ser esperto, do desenrasca, da perspicácia. A nova geração é muito perspicaz. Antigamente eram muito protegidos, mas hoje não há hipótese de serem protegidos porque há uma violência tão grande na sociedade que eles têm de reagir a isso, muito mais jovens.

O que é que viu em Sines que o impressionou tanto?

Adoro reparar nas aparências, naquelas pessoas que pensas que são uma coisa e afinal não são. Vês um jovem todo rasta e pensas "o que é que ele me vai dizer?" E depois falam com um português fantástico, um raciocínio e uma cultura incríveis e tu realmente... A coisa que eu mais detesto é o preconceito, nunca tive e tento nunca ter, e estou cada vez mais assim. O preconceito é uma coisa tão estúpida. E ver aquela multidão, pessoas completamente diferentes, a ouvir os valores deles, o que está no sangue. Porque o fado faz parte do povo português, gostes ou não gostes, é uma maneira de, não é só uma música. O fado está no ADN português. Ver esta multidão foi muito interessante.

Foi filmar depoimentos de pessoas e também o Ricardo Ribeiro?

O Ricardo é fabuloso. Acabou o concerto com a música Alentejo, que é uma coisa... As pessoas estavam superemocionadas. Estava lá a Celeste Rodrigues.

A assistir?

Sim, ela é fã do Ricardo, achei incrível. Isso é que é genial. Ela estava sentada, no último andar, a levar com o pôr do Sol magnífico no castelo, sempre com os oculinhos dela, acompanhada por um amigo. Fui tomar um café com ela. Ela chama-me "o meu namorado", o "pessegão". Disse-me que sempre que pode vai ouvir o Ricardo. Ela diz, e eu também acho, que o Ricardo é como a irmã dela, a Amália, uma voz que aparece uma vez num século. E ainda não está ao nível do que vai ser, está a começar.

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