"A Igreja de Nossa Senhora de Paris é decerto ainda um majestoso e sublime edifício. Contudo, por muito formosa que se tenha mantido ao envelhecer, a custo se contém um suspiro e não nos indignamos perante as degradações, as inúmeras mutilações, que simultaneamente o tempo e os homens causaram ao venerável monumento, sem respeitarem Carlos Magno, que assentou a primeira pedra, nem Filipe Augusto, que colocou a última. No rosto desta idosa rainha das nossas catedrais, ao lado duma ruga depara-se sempre uma cicatriz. Tempus edax, homo edacior, o que de bom grado assim traduziria: o tempo é cego, o homem é estúpido.".Palavras de Victor Hugo, escritas em 1831 e que hoje nos parecem tão atuais. Referia-se o escritor francês (1802-1885) às muitas ações de restauro e consequente acumulação de estilos sobre o edifício da catedral de Notre-Dame, em Paris. Verdade seja dita: muita aconteceu em Notre-Dame ao longo dos seus 856 anos. Sofreu remodelações imprudentes, saques revolucionárias e danos provocados pela poluição. "A catedral parece eterna e, no entanto, poucos edifícios foram sujeitos às mudanças da evolução histórica como este", escreveu o historiador Jacques Le Goff, em 2005, no livro Héros et Merveilles du Moyen Age..Em permanente reconstrução.A primeira pedra da catedral foi colocada em 1163, na presença do Papa Alexandre III, na Île de la Cité, em pleno Sena, local de uma antiga catedral romana e onde antes já tinham existido outros templos. O arcebispo de Paris, Maurice de Sully, admirador do estilo gótico, queria que aquela catedral assinalasse a grandiosidade do cristianismo e fosse dedicada à Virgem Maria. O altar ficou terminado cerca de 20 anos depois. Sully conseguiu celebrar ali a primeira missa, em 1182, mas morreu sem ver a catedral terminada. As duas torres foram construídas entre 1225 e 1250. E o templo só ficou definitivamente pronto em 1345. A construção da igreja está, assim, intimamente ligada ao crescimento e implementação da cidade de Paris..A primeira remodelação aconteceu durante o reinado de Luís XIV (1643-1715) e não foi muito feliz. O iluminismo não simpatizava com a arquitetura da Idade Média. Os vitrais foram substituídos por janelas transparentes, a pedido da igreja, "para deixar entrar luz", um pilar foi demolido para permitir a passagem de carruagens e a balaustrada original foi demolida..Os tempos da Revolução Francesa foram ainda piores. Dezenas de imagens religiosas foram destruídas, incluindo a decapitação das 28 estátuas da Galeria dos Reis. O palácio do bispo foi incendiado e nunca reconstruído. O pináculo foi retirado depois de danificado pelo vento. O chumbo do telhado foi usado para fazer balas e os sinos de bronze foram destruídos para fazer canhões. Consagrada como "Templo da Razão" por Robespierre, a igreja só retoma a sua função religiosa após a assinatura da Concordata com o Papa, em 1801. Foi em Notre-Dame que Napoleão foi coroado imperador, em 1804. Apesar disso, a sua decadência continuou..O corcunda e a cigana.No início do século XIX, Notre-Dame estava, portanto, em ruínas. Mas havia quem se preocupasse. Em 1825, um jovem mas já conhecido escritor, Victor Hugo, então com 23 anos, publica o panfleto "Sobre a destruição dos monumentos em França" no qual se insurge contra a destruição, por ganância ou por abandono puro e simples, do património histórico medieval: "Temos de parar o martelo que mutila a face do país", escreve: "Há duas coisas que importam num edifício: o seu uso e a sua beleza; o uso pertence ao seu proprietário, a beleza pertence a todo o mundo." Este texto tem um impacto considerável. O escritor insiste no tema com um outro texto,"Guerra aos demolidores", em que volta a defender a preservação do gótico, ameaçado pela proliferação do barroco..Mas será preciso um romance para Victor Hugo conseguir fazer passar a sua mensagem. Em 1831 publica Notre-Dame de Paris (que depois da tradução para inglês, em 1833, passou a ser conhecido como O Corcunda de Notre-Dame), que conta a história de Quasímodo, um homem coxo e deformado, adotado pelo arquidiácono Claudio Frollo, que vive na catedral, isolado do mundo, e é responsável por tocar os sinos, e da sua paixão pela bela cigana Esmeralda, de 16 anos, que dança na praça em frente de Notre-Dame..A ação passa-se no século XV, mais exatamente 1482, no reinado de Luís XI, que assistia diariamente à missa na catedral. Na sua versão completa, Nossa Senhora de Paris tem 59 capítulos que se dividem em onze livros, o terceiro dos quais, um dos mais curtos, se concentra na grande catedral e na cidade de Paris, uma cidade violenta e suja, uma cidade de contrastes, onde a nobreza e os pedintes partilham as ruas mas, na realidade, vivem em mundos diferentes..Vítima de uma emboscada, Esmeralda é acusada de assassinar o capitão da guarda e condenada à morte mas é salva por Quasímodo que a leva para as catacumbas de Notre-Dame. É aí que a cumplicidade entre estas duas figuras, excluídas da sociedade, cresce. No entanto, a paixão está condenada. A tragédia seduz o cinema e o livro acabará por dar origem a uma série de filmes, entre os quais o de William Dieterle (1939), com Charles Laughton e Maureen O'Hara, e o de Jean Delannoy (1956), com Anthony Quinn e Gina Lollobrigida, já para não falar da popular versão animada da Walt Disney (1996)..Guerra aos demolidores.O que os filmes muitas vezes ignoram é que, no livro de Victor Hugo, tão importante quanto a relação amorosa, é a catedral, mais do que cenário, verdadeira personagem deste romance. Não é à toa que é a catedral que dá título ao romance. O escritor usa Quasímodo para manifestar toda a sua paixão por Notre-Dame: "A catedral não era apenas a sua sociedade, mas o universo." Quasímodo não conhecia sebes para além das "janelas pintadas, sempre em flor", as únicas montanhas que via eram as "colossais torres da igreja", o seu oceano era a cidade de Paris. "A sua catedral era suficiente para ele", escreve. Ali, estava seguro. As estátuas eram os seus companheiros. "Os santos eram seus amigos e abençoaram-no; os monstros eram seus amigos e protegiam-no. Então ele vivia em comunhão com todos. E às vezes passava horas aninhado em frente dessas estátuas, em conversas solitárias com elas. Se alguém aparecia, ele fugia como um amante apanhado na sua serenata." E o que Quasímodo amava, acima de tudo, aquilo que "despertava a sua alma" eram os sinos: " Adorava-os, acariciava-os, falava com eles, compreendia-os.".O livro foi um sucesso imediato. E as calorosas descrições de Notre-Dame despertaram a atenção dos parisienses para a preservação da catedral. A cidade voltou a olhar para aquele monumento tão degradado. Pouco depois, o governo criou a Comissão para os Monumentos Históricos, chefiada por Prosper Mérimée, e em 1841 contratou os arquitetos Eugène Viollet-le Duc e Jean-Baptiste Lassus para que devolvessem a antiga glória a Notre-Dame. Lassus morreu em 1857 e deixou a tarefa para Viollet-le-Duc. Nos anos que se seguiram, ele supervisionou a reconstrução da torre, o restauro das estátuas, a construção de uma nova sacristia, a recuperação dos vitrais, a adição das famosas gárgulas, a instalação de um novo órgão e vários outros melhoramentos. E, num daqueles momentos incríveis em que a vida imita a arte, a remodelação do espaço foi realmente inspirada nas descrições de Victor Hugo..Após o sucesso de Notre-Dame de Paris, o escritor humanista continuaria a lutar pelas suas causas. A 2 de julho de 1867, um dia depois da abolição da pena de morte em Portugal, Hugo escreveu uma carta endereçada a Eduardo Coelho, fundador do DN, e que foi publicada no jornal, na qual felicitava o gesto deste "pequeno povo que tem uma grande história".."Os parisienses têm uma relação muito próxima com a sua catedral e penso que tal se deve em grande parte ao interesse causado pelo livro", afirmou esta semana ao The Washington Post Stephen Murray, historiador e professor da Universidade de Columbia. Não admira, por isso, que perante o incêndio que destruiu parte do monumento, muitos tenham querido ler esta obra obra de Victor Hugo que assim voltou aos tops de vendas. Talvez, também, para recordar esta lição: a reconstrução é sempre possível.