A situação em que estamos não é assim tão diferente daquela em que estávamos em março"
Portugal tem atualmente uma média de 300 novos casos por dia, a maioria na região de Lisboa e Vale do Tejo. O que é que isto nos diz em termos epidemiológicos? O que podemos esperar desta evolução?
Estava concentrado na região de Lisboa e Vale do Tejo, mas entretanto a situação já evoluiu um pouco e temos tido uma maior dispersão nos últimos dias, com casos também noutras regiões. Mas, de facto, há um número importante de novos casos todos os dias, que implicam um esforço de contenção e se não intervirmos a situação poderá eventualmente degradar-se. Não é uma catástrofe, mas também não é uma situação que nos deixe tranquilos. As unidades de saúde estão muito pressionadas há muitas semanas.
Como se explica que na região norte, que foi a mais afetada na fase inicial da pandemia, não existam novos casos há mais de duas semanas, mas no resto do país, sobretudo Lisboa, continuem a crescer, quando as medidas de combate à pandemia são uniformes para todo o território? A questão da imunidade de grupo terá algum peso aqui?
Não, penso que a questão da imunidade não é relevante. Numa fase inicial, as coisas concentraram-se na região Norte, circunstancialmente, fruto de uma maior proximidade com a região do norte de Itália. Neste momento, temos um maior número de casos na região de Lisboa e Vale do Tejo que pode ser explicada por haver comunidades em que a doença tem estado a instalar-se e se tem disseminado, o que também tem que ver com a densidade populacional, com as condições de habitabilidade e com a precariedade laboral das pessoas que residem nessas zonas. É evidente que estas não são situações únicas da região periférica de Lisboa, há vários sítios onde isso também acontece, mas essa pode ser uma das explicações.
O verão, a maior mobilidade interna em termos de turismo e a entrada de turistas de outros países poderá vir a agravar a situação?
Agora no período de feriados de junho, já houve uma maior dispersão de casos para outras zonas do país e portanto sim, é possível que a situação alastre para outros locais. A questão da importação de casos também é algo que nos preocupa principalmente porque temos relações próximas com vários contextos em que a doença tem neste momento uma incidência bastante elevada como Espanha, Reino Unido, Estados Unidos, Brasil, algumas regiões de África.
Que medidas poderiam ser tomadas para conter os números que teimam em não descer?
Julgo que deveria ter havido planeamento. Se há três meses, os países foram apanhados de surpresa e não estavam preparados, nestes três meses já é mais difícil de perceber porque é que não se acautelaram estas situações, designadamente ao nível dos recursos humanos.
Recursos humanos na área da saúde?
Todos. Tivemos um primeiro embate em que as coisas acabaram por não correr assim tão mal, o que foi positivo, mas depois não se preparou a retoma. Sabíamos que perante a diminuição das restrições, seria provável um aumento da disseminação da doença, mas não se planearam nem implementaram melhoramentos necessários para que pudéssemos responder de forma mais atempada a isso. E agora estamos, em cima do acontecimento, a recrutar recursos para poderem dar uma ajuda nestas questões. Não é propriamente o ideal.
E o que seria então o ideal?
A capacidade de resposta nas unidades de saúde pública, que teria que ver com a capacidade de realizar os inquéritos epidemiológicos em tempo útil. Uma capacidade diagnóstica compatível com a celeridade que tudo isto implica, não faz sentido que tenhamos, por exemplo, menor capacidade diagnóstica durante o fim de semana, porque o vírus não vai de fim de semana. O reforço da capacidade de resposta das unidades de prestação de cuidados. E, muito importante, a questão da comunicação. É fundamental que as mensagens sejam coerentes e claras e que as pessoas percebam que a situação em que estamos não é assim tão diferente daquela em que estávamos em março, porque não temos nem imunidade de grupo nem vacina nem uma terapêutica eficaz. Melhorámos bastante a nossa capacidade de gerir os casos, fruto desta experiência, mas ainda não temos uma cura para a doença e por isso temos todos que manter as cautelas e os cuidados.
Considera que existe incoerência e falta de clareza na comunicação e nas mensagens passadas à população no que respeita às medidas de prevenção da covid-19?
Às vezes é difícil perceber que existam concentrações que são permitidas e toleradas e outras que não. Já tivemos comícios e manifestações, mas depois outros ajuntamentos de pessoas não podem ter lugar. Tem que existir coerência nesta matéria. As pessoas podem ir a espetáculos, mas não podem ir a funerais. Penso que há aqui uma dificuldade em passar uma mensagem clara de que as pessoas têm que ter cautelas, têm que manter o distanciamento, e se há algumas atividades que podem ser realizadas outras ainda não podem. Alguns exemplos que vamos vendo dos nossos líderes políticos e das instituições criam alguma dificuldade na clareza e coerência das medidas adotadas.
Como se explica que Portugal, que até há um mês era tido como um exemplo no que respeita à contenção da pandemia, agora apareça como o segundo pior, só ultrapassado pela Suécia, em novos casos por cem mil habitantes?
Eu não achei que fosse assim tão fantástico no início e não acho que agora seja assim tão desastroso. O que me parece é que isto tem que ver com a questão do planeamento. Não acautelámos o que ia acontecer e agora estamos a correr atrás do prejuízo.
Uma das explicações para o número de novos casos que não desce dos 250, 300, 350 por dia também pode ser a de haver maior testagem e mais direcionada, porque quando há um surto a comunidade envolvida é toda testada, o que aumenta a probabilidade de casos positivos?
É verdade que testamos de forma bastante abrangente e também não ignoro que numa fase inicial testávamos bastante menos, mas julgo que estamos a testar o que temos que testar por forma a controlar os surtos e portanto estamos a identificar os casos que ocorrem na nossa comunidade. Fala-se muito da questão dos rastreios, que explicariam os números, mas de acordo com os dados que ouvi recentemente esses rastreios correspondem a 15 a 20 por cento dos diagnósticos. Ou seja, a maioria dos casos não corresponde seguramente a essa situação. Se estamos a identificar os casos é porque eles existem e portanto temos é que intervir no problema e reduzir a sua incidência.
E como é que fazemos isso?
Conseguindo rapidamente identificar os casos suspeitos, testá-los, colocar os casos positivos em isolamento e os contactos em quarentena, assegurando que essas quarentenas possam ser cumpridas de forma adequada. Temos constatado que alguns bairros, onde existe maior desigualdade social, têm registado maior incidência da doença. Provavelmente, as pessoas que vivem nesses bairros têm maior dificuldade em cumprir o distanciamento, portanto é importante criar medidas para que isso possa fazer-se de forma mais adequada. A questão da precariedade laboral também tem que ser tida em conta.
Porque falha a proteção social para quem é precário.
Sim, a precariedade laboral implica que muitas pessoas não possam cumprir a quarentena porque deixam de ter rendimentos. Temos depois os contextos em que a transmissão acontece mais facilmente, como os transportes, em que é importante reduzir a disseminação. Alguma incidência também tem que ver com os comportamentos dos mais jovens, que não tomam as devidas cautelas e acabam por contribuir para o aumento da disseminação. Depois temos as diversas atividades económicas que devem manter todas as medidas que possam minimizar os riscos. Finalmente, o governo tem que dotar o país da tal capacidade de resposta, a montante, na capacidade de deteção e implementação de medidas de saúde pública, e a jusante, na resposta do ponto de vista de cuidados de saúde.
Existe o risco de se voltar a um novo confinamento? O que poderia obrigar a isso?
É difícil fazer uma avaliação apenas com um indicador. É preciso olhar para a situação epidemiológica e vê-la de forma abrangente. Ninguém deseja regredir naquilo que são as atividades que já estão permitidas, mas não regredir depende de todos nós. Se as pessoas cumprirem aquilo que lhes está a ser pedido, acredito que não será necessário voltar a essa fase, mas se não cumprirem, se não tivermos os recursos, se a situação se for degradando, chegará uma altura em que será necessário tomar medidas mais abrangentes e que podem implicar maiores restrições.