RAP sobre os aplausos às janelas: "Uma instituição como o SNS só recolhe um aplauso tão unânime quando morre"

Fazer humor em tempo de coronavírus está a ser o maior desafio da carreira de humorista do antigo Gato Fedorento. Quem o vê ao domingo nos ecrãs de televisão esquece por 20 minutos que é proibido brincar com o covid-19. É a quarentena surreal dentro da quarentena real.
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É o único humorista que continua no ativo e sobe ao palco nestes tempos de quarentena todas as noites de domingo. Teimosamente, Ricardo Araújo Pereira enfrenta uma sala de teatro vazia e sem aquele público com quem testava as suas rábulas, enquanto olha para a câmara com que outro solitário filma a atuação. Do lado de cá, os espectadores apreciam a sua resiliência em continuar a atuar e traduzem esse apoio da forma que todos os artistas mais apreciam: deram-lhe os primeiros lugares nas audiências televisivas nestas últimas duas semanas.

A única emissão que rivalizou com o número dos espectadores que assistem religiosamente a Isto É Gozar com Quem Trabalha foi um jogo do Benfica repetido, mas Ricardo Araújo Pereira não se importa: "Até por respeito para com o Glorioso!" E isto num tempo em que existe mais oferta de televisão por cabo do que nunca, nos videoclubes das plataformas de streaming como a HBO e a Netflix.

Ao usar apenas os poucos recursos de quem trabalha mais só e quase nada tem à disposição para continuar a fazer o programa, como adereços ou as ilustrações que lhe apareciam num ecrã atrás, Ricardo Araújo Pereira está feito treinador de bancada que aponta a tática ao avançado e ao mesmo tempo reza para que a defesa impeça o guarda-redes de sofrer um valente frango. Ou seja, um verdadeiro one man show! A inspiração não lhe tem faltado, nem que seja pôr-se a comer pizas do princípio ao fim da emissão ou a dar tiros nos alegados vírus que se passeiam pelo cenário.

De um mês para o outro o seu humor passou a usar máscara ou tudo continua a ser "humorizável"?
Continuo a achar que é possível ter uma perspetiva humorística sobre todos os temas, sem exceção. E que é precisamente nos temas delicados que o olhar humorístico deve deter-se mais. Acontece que, em situações como a que estamos a viver, o nosso primeiro instinto é considerar que o riso talvez seja uma reação inadequada. Isso é natural, acho eu, por várias razões: pela aparência de uma certa falta de respeito pela gravidade do momento, pelo facto de o riso dar prazer, etc. E, no entanto, também não parece sensato suspender a comédia, exatamente porque o que ela faz é subtrair peso às coisas. E era bom que isto fosse tudo um bocadinho mais leve.

É impossível não pensar no estilo provocatório dos Monty Python quando se fala do humor sem tabus. Até onde iriam eles perante esta situação?
Não sei. Mas, há dias, o John Cleese publicou um texto que dizia: "O Eric Idle ligou-me a dizer que devemos evitar morrer nesta altura, uma vez que ninguém poderá ir ao nosso funeral. O Jonesy [Terry Jones] era mais esperto do que a gente pensava, porque resolveu morrer antes disto."

Quando está a ler os textos que vai interpretar no programa já faz autocensura?
Nós escrevemos exatamente o que nos apetece. Não chamaria autocensura ao único constrangimento que temos, que é o nosso gosto. Curiosamente, por causa desta sensação de fim dos tempos, até o gosto passa a ser um bocadinho mais elástico.

Nos últimos domingos vimo-lo atuar sem público. Como é a sensação de falar apenas para uma câmara?
É penoso. O programa não era gravado perante uma plateia por uma questão de capricho. Era um diálogo; agora é um monólogo. A reação do público não é um pormenor: o risco de não fazer rir a plateia faz parte do jogo. Fazer aquilo num estúdio vazio dá uma sensação de inutilidade - que, não sendo nova para mim, uma vez que estou bastante habituado a sentir-me inútil, é perturbadora. É como fazer equilibrismo num arame que está a dois centímetros do chão. Mesmo que não caia, não é grande proeza. Além disso, o programa é, basicamente, uma pessoa sentada a uma secretária a resmungar. Precisa de uma certa energia, que é mais fácil de obter com uma plateia à frente. Agora, muitas vezes, por causa da inexistência de reação, dou por mim a falar muito alto. Passo o programa todo a perguntar a mim próprio: "Porque é que estás aos gritos?"

É um momento em que está a testar a sua criatividade?
A criatividade é sempre posta à prova em programas deste tipo. O que está em causa é a consistência. Ser capaz de ficar uns anos a fazer um programa destes é comum, por exemplo, nos Estados Unidos. Mas isso apresenta uma dificuldade especial. É mais cómodo ir variando, experimentando formatos diferentes. Essa é uma das razões pelas quais mantenho a crónica da Visão e da Folha de S. Paulo - e, sempre que posso, a colaboração com a Rádio Comercial: porque isso me permite fazer outras coisas e falar de outros temas. Mas o que a SIC nos pediu foi que procurássemos fazer um programa semanal sobre a atualidade que fosse capaz de manter a capacidade de atrair público durante um período longo. Agora isso é ainda mais difícil, porque só existe um tema, e o único tema que existe é delicadíssimo. Já nem falo das dificuldades práticas. Por exemplo, neste momento é bastante difícil arranjar o adereço mais simples.

Está a ser fácil ter um convidado ou só tem respostas positivas por parte do governo?
Em circunstâncias normais, a nossa entrevista é um pretexto para um palhaço provocar alguém que está numa posição de poder: um governante, o dirigente de um partido - em suma, um sotôr. É disso que se trata. Ora, nesta altura, toda a gente está aflita. Apesar de tudo, não tem sido muito difícil arranjar convidados, mas o ambiente é compreensivelmente mais soturno.

Se usar máscara na rua consegue passar despercebido. Já tinha pensado nesta forma de escapar aos fãs?
Não. Na verdade, não tenho razão de queixa de quem me aborda na rua. E, nesta fase da quarentena, até tenho saudades dos bêbedos.

Pode dizer-se que o título do seu livro, A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar era uma antevisão deste pesadelo?
Não chega a ser a antevisão de coisa alguma, é uma descrição bastante exata da vida. Se tudo correr bem, nós vamos todos envelhecer muito e depois morremos. Essa é a melhor das hipóteses, o que é trágico. Logo, tem graça.

Mantém a frase desse livro em que diz: "O humorista deve levar a sério a tarefa de se manter estrangeiro no mundo - e dentro de si mesmo"?
Sim. Essa capacidade tem muitas vantagens. O humor partilha com a filosofia um certo gosto por tomar o familiar por estranho e o estranho por familiar. Isso só é possível quando somos capazes de estabelecer essa distância entre nós e as coisas - e entre nós e nós mesmos. É uma maneira um tanto bizarra de viver, e haverá outras melhores, mas cada um com a sua mania.

E o que dizer da frase mais adiante: "O riso subverte o medo"?
Não me parece muito polémica. O riso dá o seu contributo, ainda que ténue, para esconjurar o medo. Talvez não seja a arma mais inteligente, nem eficaz, mas justamente por isso há uma certa beleza em usar um recurso tão frágil contra um inimigo tão poderoso.

Surpreendeu-o a declaração de amor de TODOS os portugueses ao SNS...
Mais do que surpreender, assustou-me. Normalmente, uma pessoa ou instituição - como o SNS - só recolhe um aplauso tão unânime quando morre. Por momentos, receei que os hospitais já tivessem fechado.

Há vários poetas a fazer versos a propósito desta época de ruas vazias. Deveríamos manter a poesia para temas mais nobres ou devemos dar uma de Alexandre O'Neill e cabe tudo?
Partilho o gosto de Alexandre O'Neill por poemas sobre o transporte do gás engarrafado. Talvez por isso, os versos sobre a epidemia têm-me parecido um tanto solenes. Por outro lado, também subscrevo a ideia de que "a regra é não haver regra / a não ser a de cada um, / com sua rima, seu ritmo, / não fazer bom e bonito, / mas fazer bom e expressivo..." Portanto, a quem quiser versejar sobre o covid, desejo sorte. E um bom dicionário de rimas.

Vamos ao dia-a-dia. O que já lhe apeteceu comer e não pode?
Quanto espaço tenho? Quando isto acabar vou dar a volta ao país e encher o bandulho de pratos regionais. Em três meses reponho os níveis de consumo turístico que havia antes da pandemia, munido apenas do meu estômago.

Além de não poder assistir a jogos do Benfica, o que mais lhe custa nestes tempos?
Há doenças que debilitam, incapacitam e matam. Mas uma doença que nos tira os jogos do Benfica, de facto, é particularmente cruel.

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