Metáforas bélicas são frequentes na luta em curso contra a pandemia, mas torna-se cada vez mais evidente que a "guerra" contra as pandemias tem de transformar-se numa "revolução". Que revolução?.On Living in a Revolution (Viver em Revolução) é o título do primeiro de um conjunto de 15 ensaios publicados em 1944 por Julian Huxley (neto do famoso biólogo darwinista Thomas Huxley), que foi o primeiro Director-Geral da UNESCO. Era um eminente cientista e um intelectual multifacetado, com um pensamento independente, brilhante, visionário e uma personalidade carismática, fascinante. As suas ideias eram suspeitas de comunismo soft para os EUA que, por isso, na primeira Conferência Geral da UNESCO (1946, Paris) só aceitaram a sua eleição como Director-Geral para um mandato de dois anos (e não os seis previstos na Constituição da Organização)..Huxley afirmava: «O facto mundial mais importante não é o estarmos numa guerra, mas estarmos numa revolução», no sentido de «transformação histórica». Considerava que «nunca o processo de repensar foi tão intenso» como naqueles anos de nova Guerra Mundial. Estava em curso «uma revolução do pensamento, reforçando e sendo reforçada pela revolução das realidades económicas e sociais». Em sua opinião, era necessária uma «reavaliação dos valores» (no sentido nietzscheano de Umwertung aller Werte). Se quisermos, «temos o privilégio de fazer história». Como?.Não é fácil «visualizar um novo tipo de sociedade», mas é necessário tentar e começar a agir nessa direcção, mesmo se «à custa do abandono de muitas ideias que pareciam outrora luminosas e inspiradoras». Será através de uma revolução verdadeiramente democrática, cujos critérios devem ser os seguintes: «O único critério universal da democracia e do método democrático é a satisfação das necessidades dos seres humanos, o seu bem-estar, desenvolvimento e activa participação nos processos sociais. Outro critério democrático, aplicável no futuro imediato, é a cooperação na organização internacional, num plano de igualdade, incluindo o tratamento dos povos menos desenvolvidos como potenciais iguais». Isto implica, no plano nacional, «a subordinação do económico a razões não-económicas [...] mais planeamento e controlo central [...] maior integração social e unidade cultural e uma finalidade social mais consciente»; e «um grau mais elevado de organização internacional». Resumindo: uma sociedade democrática é uma sociedade de direitos, deveres e responsabilidades. Com as emoções das crenças colectivas, mas sem os individualismos e nacionalismos em que «se permite que os direitos de propriedade prevaleçam sobre as necessidades humanas»..No segundo dos ensaios, intitulado Economic Man and Social Man (O Homem Económico e o Homem Social, publicado em 1941), Huxley citava o livro de Peter Drucker intitulado The End of Economic Man - The Origins of Totalitarianism (O Fim do Homem Económico - Origens do Totalitarismo, 1939) e concluía que se estava no fim de uma época, do «homem económico», e do início de uma «nova época da civilização» cuja melhor caracterização seria «a época do homem social». A sociedade será «unida principalmente pelo calor das relações dos seres humanos e grupos organizados de seres humanos, mais do que pelas frias forças impessoais do lucro e da competição económica». Temos de pôr em segundo lugar muito daquilo que está em primeiro lugar nas nossas vidas. «Há forças poderosas agindo contra qualquer mudança deste tipo. Mas também há reservas de sanidade e idealismo que podem ser mobilizadas em seu favor». A democracia terá de lutar muito para sobreviver e transformar-se a si própria; terá de lutar contra inimigos dentro e fora de si». Em suma, «a nova fase da história pode ser chamada Idade do Homem Social», que é cada ser humano e a sociedade no seu conjunto. «Liberdade, Igualdade, Fraternidade - esta será sempre a tripla coroa da democracia», compreendida à luz das condições de cada época..Foi no fim da Segunda Guerra Mundial, com a vitória eleitoral do Partido Trabalhista (sobre o vitorioso Winston Churchill) em Julho de 1945, que foi criado o Serviço Nacional de Saúde britânico - o primeiro no mundo - inaugurado por Aneurin Bevan, Ministro da Saúde do Governo de Clement Attlee, no Park Hospital de Manchester (hoje Trafford General Hospital), três anos mais tarde, como instituição central de um Welfare State. Na sua obra A Social History of England (Uma História Social da Inglaterra, 1983), o historiador Asa Briggs (Lord Briggs) escreveu: «O "dia marcado" para a inauguração, 5 de Julho de 1948, foi uma espécie de Dia-D do Estado Social» (alusão ao dia do desembarque dos Aliados na Normandia, em 1944). A partir de fins dos anos 1980, todavia, o Estado Social tem sido progressivamente desmantelado pela ideologia neoliberal..O liberalismo clássico era uma ideologia da liberdade, teorizada por autores como Locke, Montesquieu e Adam Smith, segundo a qual o Estado deveria ser apenas como que um guarda-nocturno para garantir as condições do livre e pacífico funcionamento da sociedade. O termo "neoliberalismo" terá sido utilizado, pela primeira vez, em fins do século 19, mas foi nos anos 1990 que se generalizou, com uma conotação negativa, findo o confronto da Guerra Fria entre comunismo capitalismo..O neoliberalismo apresenta-se como ideologia do "mundo livre", vantajosa para todos e para a democracia. A sua causa não é, todavia, o valor da liberdade das pessoas e dos povos, mas antes a liberdade de circulação de mercadorias, capitais e serviços. As funções do Estado devem ser limitadas à garantia das condições necessárias à liberdade e competitividade dos actores económicos e financeiros, tais como a segurança pública, um sistema judicial, um mecanismo regulador da concorrência e pouco mais. Para diminuir a carga fiscal, deve ser drasticamente reduzida a despesa pública em sectores "não produtivos" ou de "rendimento diferido", como os bens e serviços públicos da saúde, da educação, etc..A ideologia neoliberal é, portanto, uma "religião" cujo dogma é a competitividade e cuja virtude é o lucro. O seu mundo é um mercado sem fronteiras nem escrúpulos, através da submissão e enfraquecimento dos Estados e da instrumentalização das pessoas, reduzidas à condição de mão-de-obra e de consumidores, cuja utilidade conta mais do que a sua dignidade. A sua eficácia produtiva é de uma brutalidade opressora dos seres humanos e destruidora da natureza, gerando desigualdade, violência, criminalidade, podendo até criminalizar a pobreza. Por outras palavras: O neoliberalismo absolutiza a economia e relativiza a política, a justiça social e a dignidade humana. Tem uma lógica coisificante potencialmente tão bárbara como o biologismo nazi. "Capital humano" é, de resto, uma expressão com uma lúgubre ressonância nazi e estalinista..As crises que geraram a turbulência do sistema financeiro mundial nos últimos anos da década de 1990 e em anos mais recentes abalaram o credo neoliberal. Redescobre-se a importância das funções do Estado, dos valores culturais e dos bens públicos. Joseph Stiglitz, Prémio Nobel de Economia em 2001, observou que «a defesa intelectual do fundamentalismo do mercado desapareceu amplamente», porque há «uma compreensão das limitações dos mercados». O equilíbrio entre os interesses privados e o Interesse Público «é uma quinta-essência da actividade política»..Em suma: A ideologia neoliberal não tem sentido do Bem Comum..Bem público é algo que tem um valor tão elevado para cada um e todos os membros de uma comunidade humana, que deve ser objecto de garantia colectiva. Tempos houve em que a manutenção do fogo, por exemplo, era um bem público para os grupos humanos. A segurança colectiva é também uma necessidade de todas as sociedades, em todas as épocas. Cada vez mais os bens públicos nacionais se tornam globais..Bem público global é um bem que, pela sua natureza, importa a todos os seres humanos e a todos os povos, tornando indispensável a cooperação internacional. É uma noção recente, mas a realidade que designa não o é tanto. São já bens públicos globais, no século 19, os acordos internacionais de regulamentação da aviação civil e das telecomunicações, por exemplo. Hoje, num mundo tão globalizado, são mais numerosos os bens públicos globais, que podem ser repartidos em duas categorias principais: os que têm substância ética e os de natureza instrumental. Têm substância ética aqueles que são inerentes à própria qualidade de ser humano, como o genoma, a dignidade e direitos humanos. São de natureza instrumental os que são necessários à protecção, realização e promoção dos primeiros: são valores institucionais, científicos, tecnológicos, ambientais, preventivos, estéticos. A protecção da camada de ozono, a estabilidade financeira internacional, a Internet, as vacinas, por exemplo, tornaram-se bens públicos globais..Males públicos sempre foram, por exemplo, a criminalidade e as epidemias. Hoje, têm uma dimensão global, de que são exemplos o terrorismo e as pandemias. O Covid-19 tornou-se um mal público global. É "democrático" na medida em que ninguém consegue viver numa quotidiana "bolha" protectora do seu contágio, mas tem efeitos de discriminação porque as sociedades menos preparadas para se defenderem são as mais vulneráveis economicamente e politicamente e fragilizadas pela depauperação ou mesmo extinção das instituições protectoras dos bens públicos por políticas neoliberais..A Peste de Albert Camus, tão frequentemente evocada nestes dias, termina com estas palavras: Bernard Rieux sabia «que chegaria o dia, talvez, em que, para mal e lição para os homens, a peste despertaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz». O mundo sairá desta "guerra mundial" moralmente mais arrumado, mas não necessariamente melhor cuidado. Se os seus "donos" não aprenderem a "lição" do "mal" que nos está a acontecer, para que a "cidade" possa ser "feliz" de outra maneira, "ratos" muito mais mortíferos poderão voltar e atacar apocalipticamente uma espécie estupidamente indefesa. A lição é esta: A espécie humana não poderá sobreviver e viver uma felicidade menos ímpia e insensata sem uma revolução como aquela de que falava Julian Huxley em plena Segunda Guerra Mundial. Uma Revolução dos Bens Públicos Globais, que é fundamentalmente uma Revolução dos Direitos Humanos. O seu Manifesto já foi proclamado pela Comunidade Internacional: é a Agenda 2030 para um Desenvolvimento Sustentável adoptada por uma Cimeira das Nações Unidas, em 2015, cuja Declaração afirma, nomeadamente: "Queremos um mundo de respeito universal pela dignidade e direitos humanos, pelo Estado de Direito, pela justiça, pela igualdade e pela não-discriminação"..Três direitos humanos estão particularmente em foco nesta luta contra a pandemia: o direito à saúde, o direito aos benefícios do progresso científico e suas aplicações, o direito à educação..O direito à saúde, obviamente. Estamos tragicamente a aprender que a saúde não é um bem apenas individual, mas comum. Um avançado e acarinhado sistema nacional de saúde é do interesse de pobres e ricos. E na globalização em que "estamos juntos" somos cada vez mais planetariamente interdependentes, para o bem e para o mal. Ninguém, pessoa ou Estado, está isoladamente protegido contra uma pandemia..O direito aos benefícios do progresso científico e suas aplicações, porque à ciência é a mais poderosa "arma" na luta contra as doenças. As vacinas que a comunidade científica conseguiu criar, em colaboração e num tempo tão breve, são uma poderosa afirmação do "instinto de vida" da espécie e da sua capacidade de solidariedade. A competição por elas e a indignidade de comportamentos colectivos e individuais para passar à frente dos outros, são, contudo, manifestações do nosso lado mais sombrio e temível..O direito à educação, sobretudo, porque um ser humano nasce sem razão de ser, mas tem muitas razões para ser como é. Depois do nascimento biológico, é através da educação que renasce para uma vida humana, isto é, para a racionalidade, a moralidade e a criatividade. Dela depende a capacidade individual e colectiva de sobrevivência e desenvolvimento, o progresso científico e tecnológico, com seus múltiplos benefícios, e a consciência cívica necessária para comportamentos esclarecidos, responsáveis e solidários. A educação é o maior poder e a maior responsabilidade da espécie humana..Julian Huxley era irmão de Aldous Huxley, autor de Brave New World (Admirável Mundo Novo, 1932), em cujo último Capítulo (XVIII) Bernard pergunta ao Selvagem, olhando o seu aspecto doentio: «Comeu alguma coisa que lhe fez mal?». O Selvagem abanou a cabeça e respondeu: «Comi a civilização»..A pandemia em que estamos é uma doença da civilização. Da civilização da «nossa sociedade individualista e consumista» (commercial-minded individualist society) de que falava Huxley. Se a espécie humana não mudar de civilização, desaparecerá com ela..Universidade de Lisboa, Investigador