Setúbal acordou esta quinta-feira para mais um dia quente de verão, com o sol a convidar a um mergulho na bela praia da Figueirinha ou mesmo a um passeio na Arrábida, mas ao final da manhã apareceu, em turbilhão, a notícia que os adeptos do Vitória não queriam: o clube que a 20 de novembro festeja os 110 anos de existência vai jogar no terceiro escalão do futebol português, o chamado Campeonato de Portugal..Rui Esteves, antigo jogador do V. Setúbal, nem queria acreditar quando soube. "Ia para a praia e voltei para trás. Vim logo aqui para o Bonfim", revelou ao DN quando abandonava o estádio, ainda incrédulo com o que está a acontecer ao clube. "Esta direção não acompanhou o profissionalismo dos jogadores, são uns amadores", disse, revoltado, deixando a garantia de que, "com a massa associativa que tem, o Vitória não vai acabar", antes de apontar de novo o dedo a quem gere o clube: "Eu estou disponível para ajudar, mas não é com estes passarinhos, estes senhores têm de sair daqui imediatamente.".Um par de horas depois de o presidente Paulo Gomes ter tomado posição em conferência de imprensa, na rua que rompe entre o estádio e o pavilhão Antoine Velge estavam cerca de 30 sócios do Vitória, uns cabisbaixos, alguns olhando o horizonte e ainda outros em pequenos grupos lembrando que, pelo menos nas próximas duas épocas, não haverá futebol de primeira no Bonfim. Aquilo que era um direito adquirido no relvado foi-lhes tirado pela decisão da Liga que atirou o clube para fora das competições profissionais por incumprimento de três pressupostos financeiros. A decisão tomada pelo Tribunal Arbitral do Desporto em não suspender a decisão da Liga caiu como uma bomba na cidade do Sado..A presença da reportagem do DN no Bonfim foi uma espécie de acendalha numa fogueira já bem forte. À revolta de alguns jovens elementos da claque interpuseram-se os mais velhos, procurando acalmar os ânimos. Entre eles, José Mendes, antigo defesa central do Vitória nas décadas de 1960 e 1970, que não escondeu o sofrimento que lhe causa ver o seu clube do coração cair no abismo... Não quis fazer qualquer comentário, tal como muitos dos que estavam naquela rua, onde o sol não entrava para amenizar o sentimento de tristeza. "Não queremos falar, a dor é muito grande... Agora, é preciso que a dor passe para podermos aceitar o que aconteceu", dizia um sócio sadino, encolhendo os ombros..O medo de o Vitória acabar.Um pouco por toda a cidade, o tema das conversas era o mesmo: o Vitória. "Vivo em Setúbal há 40 anos, sou sportinguista, mas gosto muito do Vitória e estou muito triste com o que aconteceu. Temo que o clube acabe, mas os adeptos não merecem o que está a acontecer", atirou Leónia Lopes, de 65 anos, que, na ausência do filho, assumia o comando do restaurante Cantinho dos Petiscos, na Avenida Luísa Todi..Ali bem perto, numa velha tasca junto à Praça do Bocage, o jogo de cartas era acompanhado pelos lamentos de Isaías Anjos, de 70 anos, e de José Fernando, de 62. "É uma injustiça", atirou o primeiro, vitoriano dos sete costados, que foi sócio durante 40 anos, mas que desistiu porque "agora os clubes são empresas, já não é como era antigamente".."Nos últimos anos, o Vitória tem andado sempre com a corda na garganta e agora temo que acabe... Vamos ver se conseguem apoios para fazer uma equipa para subir o mais rapidamente possível", dizia Isaías, enquanto José Fernando, orgulhoso vitoriano e benfiquista, ia mais longe no que diz respeito aos problemas que se avizinham: "Isto é mau para o negócio em Setúbal e para o distrito. O problema é que os sócios do Vitória já têm alguma idade e não existem pessoas à altura para gerir o clube... E por isso não conseguem patrocínios, ainda mais numa altura de pandemia como a que estamos a viver."."Faltam pessoas como o Fernando Pedrosa [exerceu quatro mandatos como presidente], que era quem aguentava o clube e tinha amor pelo Vitória", acrescentou José Fernando, que é trabalhador na área hoteleira e lembra que os problemas financeiros que o turismo está a atravessar também vão prejudicar o clube. "Se o Vitória não subir à II Liga logo no primeiro ano, poderá acabar", sublinha..Atento à conversa, Sebastião Lopes, numa mesa à parte, lançava uma mensagem de esperança. "Ainda não é certo que o Vitória vá descer à terceira divisão, acredito que o tribunal ainda vai tomar uma decisão final antes do início do campeonato", sublinhou do alto dos seus 71 anos, lembrando que o clube "merece estar na I Liga" e que "a culpa é da direção, que não percebe dos assuntos"..Mesmo assim, acredita que "ainda há salvação para o Vitória", mas para isso, garante, "é preciso que o tribunal lhe dê razão". "Olhe, ainda vai acontecer igual ao que se passou com o Gil Vicente", frisou, deixando entretanto um lamento: "O Portimonense devia ter respeitado o Vitória e enquanto não estivesse tudo esclarecido não devia aceitar o lugar na I Liga.".Lá se vão os dois dias mais fortes do ano no comércio.Na Avenida Luísa Todi, os restaurantes outrora cheios no verão estão agora a meia casa por causa do covid-19. E a perspetiva não é animadora. "Já não bastava a pandemia, agora ainda ficamos sem o futebol. O comércio da cidade vai sofrer muito, pois os dias mais fortes do ano eram quando vinham cá jogar o Benfica e o Sporting, o FC Porto nem tanto...", contou Leónia Lopes, inconsolável. "Já viu uma cidade destas, com um clube na terceira divisão? É uma grande maldade", sublinhou..Uns quarteirões mais à frente, na Petisqueira do Manuel, o gerente Manuel Tristão, de 47 anos, faz contas à vida, com a ausência de adeptos do futebol, pelo menos nos próximos dois anos. "Não sou adepto do Vitória, mas não gosto que eles desçam. Aqui em Setúbal, estamos todos tristes", disse, ao mesmo tempo que responsabilizou os dirigentes do clube: "Durante a época, era tudo muito bonito e só agora é que se lembram dos problemas. Sabe uma coisa, se os dirigentes lutassem mais pelo clube até eu era sócio. É uma pena o que está a acontecer, afinal são milhares de pessoas atrás do Vitória. E agora de quem é a culpa?".Os responsáveis serão encontrados lá mais para a frente, quando os tribunais decidirem sobre mais um caso que atinge um dos clubes com maior tradição no futebol português, afinal o Vitória Futebol Clube é o sétimo clube português com mais troféus nacionais conquistados. No museu estão três Taças de Portugal e uma Taça da Liga, numa história de quase 110 anos que deu a conhecer algumas estrelas do futebol nacional, como Jacinto João, José Maria, Vítor Batista, Jaime Graça, Mourinho Félix, Fernando Tomé, Otávio Machado ou, mais recentemente, Hélio Sousa.