Todos os anos, invariavelmente, a partir de 18 de dezembro de 1961, quando se aproxima esta data, ganho asas, voo e pairo sobre Goa, revivendo os acontecimentos passados há sessenta anos, como se ainda estivesse lá presente de corpo e alma..São sensações estranhas, que mudam de ano para ano, conforme as viagens de saudade que vou fazendo e as notícias que surgem, em Portugal, da terra que me viu nascer..Naquele inolvidável dia, pouco antes das sete horas da manhã, em Betim, aldeia localizada do lado oposto da cidade de Pangim, capital do Estado Português da Índia, apanhei um inesperado susto ao escutar o som sibilante da passagem dos velozes e aterradores aviões de combate por cima da minha residência..Custava-me a acreditar que se materializava a ameaça do país vizinho, tantas vezes repetida e jamais concretizada..Enquanto a dúvida pairava no meu espírito, o estrondo provocado pelo som das bombas chamou-me à realidade..O largo contíguo à varanda da minha casa depressa se transformou em ágora, onde nós, cristãos e hindus, discutimos acaloradamente, sem ninguém acreditar que a invasão pudesse ter sido desencadeada pela União Indiana, porque era voz unânime que a NATO impediria tal atrevimento ou, como assegurava um fervoroso devoto, São Francisco Xavier jamais admitiria tal ousadia..Recordo-me que ficámos furibundos porque, subitamente, a rádio deixou de funcionar. Desconhecíamos que a estação emissora de Bambolim havia sido posta em silêncio e as pistas do aeroporto de Dabolim danificadas e quase inoperacionais..Ninguém esclarecia ao certo o que realmente estava a acontecer, predominava a especulação..Após o choque inicial, havia quem admitisse que tudo não passara de uma rajada passageira de vento, sem importância de maior..Guiado pela curiosidade, atravessei o rio Mandovi e desloquei-me de ferryboat a Pangim onde fiquei realmente apreensivo, porque não só um escasso número de pessoas circulava, como também vi soldados armados de espingardas Mauser, deitados defronte do palácio do governador, a guardarem aquele edifício governamental..Ao regressar a casa, cruzei-me com escassos vizinhos, desconhecendo que os mais precavidos se haviam deslocado para o interior, procurando estar longe das estradas mais movimentadas..Perto do meio-dia, um viajante, vindo de Verém, gritava:.- "Há guerra, há guerra"..- "Qual guerra?".- "Os barcos estão a combater", - dizia ele, indicando a direção..O meu amigo Bitú e eu, de bicicleta, pedalámos céleres até ao outeiro de Nerul, de onde presenciámos o combate naval do aviso Afonso de Albuquerque contra as fragatas inimigas Betwa, Bea e Cauvery, que podiam ser apoiadas pelo cruzador Mysore e pelo porta-aviões Vikrant..Afligíamo-nos quando a água do mar saltava, ferida pelas bombas, como se a chuva das monções caísse de baixo para cima..Ficámos surpreendidos ao observar o veloz movimento do navio português em direção à praia de D. Paula e, inesperadamente, parar..Entretanto, a fuga da população para locais mais seguros continuava..Pelas dezasseis horas fomos informados de que as tropas portuguesas tinham abandonado a vizinha cidade de Mapuçá..Cerca das dezoito horas, quando Betim estava às moscas e Pangim despovoada, ouvimos um ruído estranho provocado pelo rolar das lagartas dos carros de combate..Ao dirigirmos para o local, da minha casa até ao cais do ferry de Betim, não encontrámos vivalma..Posicionados em plena estrada, junto ao citado cais, comprovámos a realidade incontroversa dos factos. Em primeiro lugar, vimos avançar um jipe militar, depois um veículo blindado, com a boca-de-fogo apontada na nossa direcção. Bastava olhar para a extensa coluna de viaturas militares e de veículos blindados para inferirmos que a sorte da capital estava traçada..Após terem posicionado, com os canhões virados contra Pangim, aproximámos dos tanques de guerra..Um militar indiano olhou para a capital e virando-se para nós disse:.- "Diga-lhes que se não se renderem, bombardearemos e arrasaremos a cidade"..Em ondas sucessivas, um forte contingente de tropas indianas chega a Betim..Era noite quando dois militares goeses, vestidos à civil, entram em nossa casa. Choravam. Traziam nos bolsos granadas defensivas. Afirmaram que queriam destruir pelo menos dois tanques indianos, perfilados sem nenhum cordão de segurança..Foi muito difícil fazer-lhes ver que aquele ato isolado em nada iria alterar a marcha dos acontecimentos..Na manhã do dia seguinte, vi várias barcaças a transportarem soldados armados para se assenhorearem da capital, que já tinha a bandeira branca hasteada..As negociações feitas nos bastidores, ou por intermediários, entre os representantes de Portugal e da Índia eram um autêntico diálogo de surdos, porque as duas partes defendiam, teimosamente, ideias inconciliáveis..Para António de Oliveira Salazar, presidente do Conselho de Ministros de Portugal, o território português ia do Minho a Timor, sendo uno e indivisível..Informado pelo subsecretário de estado do exército, tenente-coronel Francisco da Costa Gomes, de que os efetivos existentes no Estado Português da Índia eram demasiados para fazer face a ações terroristas mas, qualquer que fosse o seu número, seriam sempre escassos para enfrentar uma invasão da União Indiana, Salazar autoriza a redução da guarnição portuguesa em Goa de 12500 homens, em 1957, para 4344, em 1961, incluindo exército, forças navais, polícia e guarda-fiscal..Como condutor incontestável da política portuguesa e único responsável pela decisão final, estava convicto de que tinha a obrigação de defender, no seu todo, o legado histórico recebido dos seus antepassados..Daí ter ordenado ao governador-geral, general Manuel Vassalo e Silva, que se mantivesse fiel à velha tradição, na Índia, mesmo que isso significasse o sacrifício total, determinando que não poderia haver lugar a tréguas, nem prisioneiros ou navios rendidos, apenas poderia haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos..Em contraposição ao governante português, na perspetiva de Jawaharlal Pandita Nehru, primeiro-ministro indiano, independentemente das razões históricas, Goa fazia parte integrante da União Indiana. Para ele e seus apaniguados, bastava olhar para o mapa físico da Índia para se desfazerem quaisquer dúvidas..Contudo, era defensor da política de não-violência e tinha empenhado a sua palavra ao dirigir-se à Comissão do Congresso de Uttar Pradesh afirmando, em 21 de agosto de 1955, que não cobiçava Goa, nem desejava impor-se ao povo de Goa contra os seus desejos, porque era ao povo de Goa que competia estabelecer o seu futuro..E em 6 de setembro do mesmo ano, falando no Rajya Sabha, garantiu: "Desejo tirar da cabeça de toda e qualquer pessoa a ideia de que nós estamos apostados a coagir ou compelir o povo de Goa a entrar na União Indiana.".Embora tivesse sido pressionado pelo embaixador americano, John Kenneth Galbraith, para não invadir Goa, face à aproximação das eleições e às pressões, internas e externas, conformou-se com a falsa informação do seu ministro da Defesa, Krishna Menon, que lhe afiançou que as tropas indianas já tinham transposto a fronteira e ele não conseguia fazê-las recuar quando, na realidade, só avançariam mais tarde..Na sequência da marcha acelerada dos acontecimentos, o governador-geral do Estado Português da Índia, general Manuel Vassalo e Silva, sem capacidade bélica para resistir e perante o avanço galopante das forças invasoras, às catorze horas do dia 19, arcando com todas as responsabilidades, decidiu aceitar a derrota, e render-se de forma incondicional..Há quem pense que a História de Goa começou com a presença portuguesa. Puro engano. Existiram várias Goas e a sua história mais antiga ou é desconhecida, ou está mergulhada em mitos..Pensa-se que Ashoka, neto de Chandragupta, incorporou Goa nos seus territórios, quando alargou os seus domínios, no século III a. C..Com a fragmentação do seu império, Goa passou para a posse dos Kadambas de Banavasi. Um ramo destes Kadambas estabeleceu-se em Goa, formando o reino dos Kadambas de Goa. No século XI, Jayakexi I, (1050-1080), elevou a cidade de Chandor, localizada no Sul de Goa, a capital do império. É de salientar que isso aconteceu quando Portugal ainda não tinha nascido nem a Índia existia como uma entidade unificada e politicamente organizada..No século XIII Goa foi conquistada pelos árabes, para vir a ser conquistada pelo rajá hindu de Vijayanagar ou Bisnagar, em 1367..Todavia comprovei que, entre 1367 e 1440, Goa libertou-se da sujeição do reino de Vijayanagar e tornou-se totalmente independente. Contudo, voltou a cair nas mãos dos muçulmanos em 1473..Aliciado por Timoja, Afonso de Albuquerque conquistou definitivamente Goa em 25 de novembro de 1510, então território constituído apenas pelas ilhas de Tissuari, Divar, Chorão e Jua..Em 1543, Bardez e Salcete passam, definitivamente, para a coroa portuguesa e, no século XVIII, o território que irá ser chamado Novas Conquistas, de Tiracol até ao cabo de Rama, é anexado ao Estado Português da Índia..Porém, em 18 de dezembro de 1961, a União Indiana, que reclamava esses territórios como seus, cansada da intransigência do governo português para negociar a transição pacífica para a sua soberania, tomou a iniciativa de invadir, conquistar e anexar aquele Estado..Seguiu-se um longo diferendo jurídico até que, em 31 de dezembro de 1974, Portugal aceitou a situação de facto e reconheceu a plena soberania da Índia sobre os territórios de Goa, Damão, Diu, Dadrá e Nagar Aveli, a partir das datas em que se tornaram partes da Índia e nos termos da Constituição da Índia..Em 30 de maio de 1987 Goa foi declarada um estado autónomo dentro da União e no dia 20 de agosto de 1992, o concanim foi reconhecido como língua oficial da Índia..Constata-se, desta forma, que tanto Portugal como a Índia decidiram pela força os destinos de Goa. Jamais qualquer deles perguntou aos goeses se queriam a autodeterminação e a independência..Como existiram várias Goas e diversas diásporas, vou chamar goês a todo aquele que se sente como tal, independentemente de ter nascido ou não nas várias Goas, que foram existindo ao longo do tempo, ou nos países de acolhimento..Como a sociedade tende a revelar os seus modelos e esconder os fracassos, entre os goeses e seus descendentes, que se fixaram em Portugal, tivemos e temos ministros, deputados, juízes, escritores, jornalistas, professores, médicos, enfermeiros, advogados, engenheiros, militares de alta patente, presidentes da câmara, vereadores, diretores executivos em grandes empresas multinacionais, ou a desempenhar outras profissões relevantes..Assinalo que no presente governo português, com ascendência goesa, fazem parte três governantes: António Costa, primeiro-ministro, João Leão, ministro do Estado e das Finanças, cujo pai, Cláudio Leão, foi meu colega no Liceu Nacional Afonso de Albuquerque, em Goa, e Nelson de Souza, ministro do Planeamento..Mas não nos iludamos, porque estão longe de representar apenas a nata da sociedade. A maioria passa despercebida como cidadãos comuns e outros vivem com dificuldades que procuram esconder, tal como se faz por esse mundo fora..Perdeu-se Goa, mas ficou a lusofonia e a portugalidade..Historiador