Retrato de Rui Pinto pela New Yorker. O idealista detido em Lisboa

A revista norte-americana <em>The New Yorker</em> dedica esta semana uma atenção muito especial a Rui Pinto, o <em>hacker </em>português suspeito de estar por trás das denúncias divulgadas pelo <em>Football Leaks</em>.
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"While Rui Pinto sits in jail, his revelations are bringing down the sport"s most famous teams and players" ("Enquanto Rui Pinto está na prisão, as suas revelações abatem as equipas e os jogadores mais famosos da modalidade"). Este pode ser o resumo perfeito de um texto publicado na edição desta semana da revista norte-americana New Yorker, que dedica várias páginas a um dos portugueses mais mediáticos nos últimos meses, principalmente depois de ser conhecida a sua ligação ao Footbal Leaks - o site onde, entre setembro de 2015 e novembro de 2018, foram publicadas inúmeras informações confidenciais relacionadas com contratos de futebolistas e negócios efetuados entre os principais clubes europeus.

A reportagem conta a importância das informações reveladas desde o dia em que o jornalista da revista, Sam Knight, se reuniu com o responsável do site, passando pela colaboração de Rui Pinto com o jornal de desporto português Record, o Times e a revista alemã Der Spiegel, que publicaram grande parte da informação confidencial - em Portugal, foi o semanário Expresso -, incluindo a história da acusação de violação de Ronaldo à norte-americana Kathryn Mayorga, até à detenção de Rui Pinto, extraditado desde a Hungria, por "crime cibernético e extorsão".

A reportagem faz um resumo cronológico das revelações do Football Leaks, iniciadas no site em dezembro de 2015, sobre os contratos de jogadores mediáticos, como a transferência de Neymar para o Barcelona ou os problemas de Cristiano Ronaldo com o fisco espanhol. "A história inicial em que a equipa da Spiegel trabalhou foram os assuntos fiscais de Ronaldo, cinco vezes campeão da Bola de Ouro (melhor jogador do mundo), uma figura quase mítica em Portugal e o jogador favorito de Rui Pinto. Na primavera de 2016, Pinto descobriu uma empresa chamada Tollinn, nas Ilhas Virgens Britânicas, que Ronaldo estaria a usar para escapar aos impostos em Espanha. Durante semanas, Naber [jornalista da Der Spiegel] decidiu descriminar os ativos globais de Ronaldo - duzentos e vinte e sete milhões de dólares em 2015 - às suas obrigações fiscais e receitas no exterior", escreve a revista.

Ronaldo foi um dos alvos privilegiados. Em 14 de abril de 2017, a Der Spiegel revelou a acusação de violação contra Ronaldo sem nomear Mayorga. Mas a história ganhou pouca força.

Rui Pinto nunca contou como teve acesso aos milhares de documentos que mostravam como negociavam alguns dos grandes clubes europeus como o Chelsea, Arsenal, Tottenham, Real Madrid e Atlético de Madrid ou como os atletas conseguiam não pagar impostos, mas disse ter medo de ser envenenado e que antes de ser detido pensou em entregar-se às autoridades pois achava que andava a ser perseguido.

As incoerências de Bruno de Carvalho

De repente a Imprensa vivia na expectativa das revelações do Football Leaks. Pinto procurou publicar pelo menos dois contratos todos os dias. Mas, segundo a reportagem, "ficou desapontado com a cobertura dos media, que reduziram o Football Leaks a uma fonte de fofoca sobre jogadores famosos". Depois, quando em 20 de janeiro de 2016, Pinto publicou o contrato de transferência de Gareth Bale do Tottenham para o Real Madrid, "isso causou um tipo de impacto".

A revista conta como o jornalista do Times começou a trocar mensagens com uma pessoa que se identificou como John e como passadas seis semanas voou para Budapeste para se encontrar com essa fonte. Esperava encontrar um ex-funcionário sénior da FIFA ou UEFA, "mas, num pequeno hotel perto do centro da cidade, ele conheceu Rui Pedro Gonçalves Pinto, um jovem de 27 anos com cabelos espetados, nascido a norte de Portugal. Eram 5 da tarde e Pinto ainda não tinha tomado o café da manhã". Pinto deu ao jornalista "dois discos rígidos, contendo oitocentos gigabytes de dados". Mas a Times não foi a única a receber coisas. Nos três anos a seguir, o hacker português "forneceu à Der Spiegel quatro terabytes de informações confidenciais, mais de oitenta e oito milhões de documentos - um denúncia quase duas vezes maior que o dos Panama Papers e sessenta vezes o de Edward Snowden", lembra a revista.

Nesses documentos estavam muitas informações "fornecidas por Rui Pinto, que levaram à condenação de dezenas de grandes jogadores de futebol por evasão fiscal", incluindo Neymar, Messi e Ronaldo. Ainda segundo a reportagem, "desde 2016, que a Der Spiegel faz parceria com organizações de comunicação social de 13 países europeus para publicar conteúdo". O que levou os clubes a terem receio de fazer as coisas de uma maneira obscura sob pena de serem expostos.

No artigo pode ler-se que em Portugal, um dos mais veementes críticos da participação de terceiros [os chamados fundos de jogadores] em transferências e contratos de jogadores, era Bruno de Carvalho, presidente do Sporting. E que apesar da FIFA ter proibido a prática em maio de 2015, continua a ser praticada. Ironia das ironias, o Football Leaks revelou que o Sporting de Bruno de Carvalho tinha adquirido o passe de um jogador - Bruno Paulista ao Bahia - com a ajuda de uma terceira parte, o clube angolano Recreativo da Caála, que depois o emprestara aos leões.

Foi pela mesma via do Football Leaks que os adeptos souberam dos valores do contrato de Jorge Jesus, o treinador do Sporting na altura, que arrecadava cinco milhões de euros por temporada - "um salário extraordinário para o campeonato português".

O FC Porto e o Benfica também foram alvos, assim como o Marselha (França), o Twente (Holanda), ou o Real Madrid e o Manchester City. Em meados de dezembro de 2015, um porta-voz do Football Leaks, que dizia chamar-se John [mais tarde veio-se a saber que era o nome fictício de Rui Pinto] , concordou em responder perguntas enviadas pelo Times. "As pessoas podem pensar que somos hackers, somos apenas utilizadores comuns de computadores", disse John na altura.

Quem é Rui Pinto?

Mas quem é Rui Pinto? Um jovem que "cresceu numa pequena casa de azulejos azuis numa colina em Vila Nova de Gaia, em frente ao Porto, a segunda cidade de Portugal, do outro lado do rio Douro". E que "numa manhã deslumbrante em abril, quatro dos oito jornais à venda na cidade continham matérias sobre ele na primeira página". "O pai de Pinto, Francisco, desenhou sapatos numa fábrica local. Sua mãe, Maria, cuidou dele e de sua irmã, que é dez anos mais velha. Francisco se interessava por antiguidades e, quando tinha sete anos, seu pai comprou um computador desktop Intel Pentium com uma conexão discada à Internet e o instalou na sala de estar para comprar e vender moedas antigas on-line", conta a New Yorker.

"Pinto tornou-se parte do grupo que ficou conhecido como geração à rasca de Portugal - desemprego entre os jovens chegou a quase 40% - e centenas de milhares de pessoas emigraram", acrescenta Sam Knight. Como fez o hacker. Em 2015 seguiu para o Luxemburgo, já depois de estar envolvido um esquema de extorsão através da Internet.

Foi de lá que Rui Pinto conseguiu ter acesso a milhares de e-mails e contratos internos da Doyen. "O que posso dizer sobre isso é que foi surpreendente como essas entidades do futebol são confiáveis (...) Eles acham que são intocáveis", confidenciou o hacker ao jornalista do Times. A Doyen, que tinha escritórios em Londres e Malta, era dirigida por Nélio Lucas, um português de quase trinta anos, que um dia "recebeu um e-mail em excelente português de alguém que se chamava Artem Lobuzov [O nome pertence a um nadador russo de estilo livre que competiu nas Olimpíadas de 2012]" a "ameaçar com revelações prejudiciais. Lucas informou a polícia portuguesa, que já havia recebido uma queixa sobre o Football Leaks por parte do Sporting, o principal alvo em Portugal. Nos dias seguintes, Lucas compartilhou sua conversa com Lobuzov com detetives da unidade de crimes cibernéticos do país. Em 5 de outubro, Lobuzov disse a Nélio que um pagamento de entre quinhentos mil e um milhão de euros seria uma boa doação" para fazer o material desaparecer", segundo a revista.

A justiça francesa em campo

A New Yorker recorda que, em 2017, os procuradores da Parquet National Financier de França, uma unidade anticorrupção, contactaram os responsáveis pelo site Football Leaks na tentativa de convencer "John" a partilhar os dados que tinha na sua posse. Este acordo estava sustentado na legislação gaulesa uma das mais fortes na Europa no que diz respeito à defesa de denunciantes.

No verão, Rui Pinto terá contactado o advogado William Bourdon, especialista em casos que envolvem denunciantes e que já trabalhou com Edward Snowden (ex-analista da NSA que denunciou as práticas de vigilância desta e de outras empresas); Hervé Facliano (responsável pelo SwissLeaks que expôs esquemas de evasão fiscal na filial suíça do HSBC), Antoine Deltour (denunciou os LuxLeaks, detalhes de um esquema de evasão fiscal de mais de 300 empresas internacionais) e Julian Assange (responsável pela WikiLeaks).

Segundo a revista norte-americana, em novembro de 2017, o hacker português encontrou-se em Paris com os especialistas franceses da unidade anticorrupção a quem, segundo garantiram mais tarde, terá contado todas as informações que possuía. Terá dito ao autor da reportagem que se encontrou com responsáveis do programa de proteção de testemunhas franceses que lhe deram um telefone seguro para os contactar em caso de emergência.

Mais tarde foi visitado pelos pais, mas quando chegaram ao apartamento não conseguiram abrir as bagagens - os cadeados com código pareciam ter sido adulterados - e na noite seguinte quando os três regressavam ao apartamento viram a rua cheia de carros da polícia. "Eu percebi, ok, é por minha causa", terá contado Rui Pinto.

No apartamento a polícia apreendeu o computador, três telefones - incluindo o que pertencia às autoridades francesas -, três pens e 14 discos rígidos contendo 29 terabytes de informação. Depois de passar algum tempo na prisão, acabou por ser colocado em prisão domiciliária com pulseira eletrónica. E foi assim que o autor da reportagem o encontrou em fevereiro.

De acordo com o mandado de detenção emitido pelas autoridades portuguesas, Rui Pinto foi detido na sequência de uma investigação em que estava acusado de seis crimes: chantagem ao fundo de investimento Doyen e à invasão dos servidores do Sporting, no outono de 2015. O mandado não mencionava o acesso a e-mails do Benfica que, no entanto, Rui Pinto considera ser a verdadeira razão para a sua prisão.

A revista norte-americana explica Rui Pinto é um dos grandes protagonistas das denúncias de contratos "escondidos" no futebol mundial, estando ainda envolvido no caso dos e-mails, revelado por Francisco J. Marques, diretor de comunicação do FC Porto, e que visa o Benfica: "The Benfica scandal -O escândalo do Benfica". Quando o jornalista lhe perguntou se tinha algo a ver com o escândalo do Benfica garantiu: "Nunca vi uma declaração da polícia ou das autoridades portuguesas a ligarem-me a isso."

Mais tarde o tribunal de Budapeste decidiu a sua extradição para Portugal - a 21 de março deste ano - e três dias depois de ser entregue à polícia portuguesa chegaram a Budapeste vários procuradores belgas que copiaram os dados que tinha. Os seus discos rígidos estão fortemente criptografados e são, espera Rui Pinto, o garante da sua liberdade.

Certo é que no mês seguinte a UEFA anunciou que, na sequência das noticias da Spiegel, estava a investigar os negócios do Manchester City e o seu não cumprimento do fair play financeiro que pode levar o clube a ser proibido de participar na Liga dos Campeões.

Rui Pinto teme que os seus dados - dos quais a Der Spiegel só tem cerca de 14 % - possam ser perdidos ou destruídos se forem entregues à policia portuguesa. Também tem medo de ser atacado por elementos da maior claque do Benfica: os No Name Boys.

Entretanto, em Lisboa, Rui Pinto aguarda o desenrolar das investigações na prisão que está junto da sede da Polícia Judiciária. Para sua segurança está afastado dos restantes reclusos. Conta o autor da reportagem que em Budapeste lhe perguntou se se considerava um idealista. Rui Pinto abriu o computador e foi ver a definição: "Uma pessoa que é guiada mais por ideais do que por considerações práticas (...) Pensador utópico, visionário, desejoso, fantasista, fantasioso, romântico, sonhador". Segundo o jornalista, a resposta que obteve foi: "Talvez essa palavra se aplique a mim. Talvez sim."

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