Retrato da covid-19 após um ano de convívio. Quão bem conhecemos o inimigo e a nós próprios?
Dizia o arguto Sun Tzu: "Se conheces o inimigo tão bem como a ti próprio, não precisas temer o resultado de cem batalhas. Se te conheces, mas não conheces o inimigo, por cada vitória sofrerás uma derrota. Se não te conheces nem ao inimigo perderás todas as batalhas..." (A Arte da Guerra). A questão que colocamos é: qual o nosso grau de cognição, clareza, lucidez, percepção e discernimento não apenas em relação ao nosso adversário viral como também no respeitante às nossas fragilidades? (com as consequências postuladas por Sun Tzu).
Comecemos por reconhecer que o conhecimento do inimigo exige uma visão histórica de outros adversários invisíveis, como a peste negra do século XIV, a gripe espanhola de 1918, a gripe suína de 2009, o vírus ébola de 2014, 2018 e 2021, o SARS-CoV de 2002, a gripe aviária de 2005, o MERS-CoV de 2012, etc. A primeira coisa a reter é, pois, que esta pandemia não foi a primeira e decerto não será a última. Em segundo lugar, a propagação depende da natureza de cada doença e das circunstâncias sociais e políticas específicas em que a pandemia nasce. Por exemplo, a gripe espanhola surgiu durante a I Guerra Mundial pelo que a disseminação do vírus foi facilitada pela deslocação de forças militares. Hoje se por um lado a facilidade e a constância com que se viaja(va) pelo globo fora permitiu que a covid-19 se convertesse no espaço de umas semanas em surto com distribuição geográfica assustadoramente abrangente e concomitante, por outro lado o estado da arte sob uma perspectiva científica impulsionou, em regra, a rápida implementação de medidas de redução do alastramento do vírus. No que toca a taxas de mortalidade, se a covid-19 é responsável por cerca de 3 milhões de mortos todos confirmados por métodos moleculares, estima-se que a peste bubónica do século XIV devido em grande parte à ausência de conhecimento científico em sede de prevenção e de tratamento tenha resultado na morte de cerca de 50 milhões de pessoas - incluindo 30%-50% da população europeia de então (WHO). Consoante a doença, diferentes grupos apresentam-se mais ou menos vulneráveis. Por exemplo, a gripe espanhola causou sintomas graves em jovens e em pessoas saudáveis, enquanto a covid-19 parece afectar particularmente pessoas com mais de 65 anos ou com patologias subjacentes. Por último, além da devastadora perda de vidas, a interrupção da normalidade decorrente da pandemia leva inexoravelmente a prejuízos económicos. À gripe espanhola, por exemplo, seguiu-se uma recessão que era expectável tendo em conta a coexistência dessa pandemia com uma guerra mundial. A covid-19 não tem o referido enquadramento bélico, podendo, contudo, dada a quase total paralisação da actividade económica durante prolongados períodos de tempo, levar também a uma retracção geral na actividade económica. Ensina-nos a história que as epidemias e as pandemias têm um desastroso impacto na humanidade e com a história devíamos ter aprendido, começando por entender o alto grau de preparação que deve subsistir, o qual passa, entre outras coisas, pela implementação de uma política preventiva concebida com a orientação científica de quem sabe, pela existência de robustas infra-estruturas de saúde, pelo recrutamento e a mobilização de um elevado número de profissionais de saúde diferenciados para o sector público, pelo estabelecimento de protocolos de combate à propagação da infecção (elaborados para cenários variados e adaptáveis em função de diversos factores, tais como diferentes modalidades de transmissão) e pela manutenção de um processo de desenvolvimento de vacinas constante, rigoroso, eficaz e célere. Infelizmente, desta feita tem razão Hegel quando afirma, cepticamente, que "o que a história nos ensina é que não aprendemos nada com a história". Não estávamos cabalmente preparados, fomos apanhados de surpresa e, como tal, o caminho a percorrer encontra-se notoriamente repleto de inépcia e de tombos, exacerbando algo que podemos tomar como certo: não conhecemos acertadamente o inimigo; nem vírus, nem variantes, nem sequelas, nem morbimortalidade.
A covid-19 emergiu qual avalanche, de forma inusitada e abrupta, com ímpeto avassalador e com padrões comportamentais inesperados. No âmbito das mutações, bem sabemos que os vírus as sofrem, naturalmente, ao longo do tempo, não constituindo a covid-19 excepção à regra. O que surpreendeu a comunidade científica foi o facto de que um ano depois da sua devida identificação já haviam surgido milhares de mutações: algumas com impacto insignificante e outras com inegável capacidade de agilizar a propagação viral de forma aterradora, como as comummente chamadas variantes do Reino Unido (B.1.1.7 ou 20I/501Y.V1) e da África do Sul (501.V2 ou 20H/501Y.V2) com repercussões na transmissibilidade, na severidade e na resposta vacinal. Isto é, no que às variantes toca há muito por descobrir e só a investigação empírica e a passagem do tempo permitirão o gradual aumento do saber científico. No atinente às sequelas a covid-19 de novo confunde. Embora se trate de um vírus respiratório ataca não apenas os pulmões, como também o coração, o cérebro, os rins e outros órgãos, tanto desencadeando sintomas leves como doenças críticas (Science). Estudos preliminares sugerem que dependendo da gravidade da infecção os danos podem oscilar entre síndrome de fadiga crónica e, a longo prazo, danos a nível pulmonar, cardíaco, renal, imunológico e neurológico (The Atlantic). Particularmente preocupante é o sinal de que da covid-19 poderão decorrer danos cerebrais, sobretudo em pessoas com mais de 70 anos - em geral, maior dificuldade de concentração e em casos mais graves uma maior propensão para a doença de Alzheimer (Medical Research News). Todavia, a verdade é que não se sabe ainda qual o impacto da covid-19 na saúde a longo prazo porque a avaliação relevante requer tempo. Não obstante, os dados já disponíveis são preocupantes e demonstram que as consequências a longo prazo não são exclusivas dos que tiveram doença mais grave. Um em cinco indivíduos com a infeção mantém sintomas durante, pelo menos, cinco semanas e um em dez até 12 semanas. Num estudo a ser publicado em breve no British Medical Journal, cerca de um em cada três doentes com covid-19 que tiveram alta hospitalar necessitou de reinternamento e um em oito faleceu após a alta.
Das condições associadas a maior severidade na infeção pelo SARS-CoV-2 duas merecem destaque, além da idade. Depois da primeira onda pandémica, a obesidade revelou-se um dos principais factores de risco e uma característica transversal em muitos doentes internados, sobretudo na população não idosa. Mais um alerta para a pandemia crescente e omnipresente do excesso de peso e obesidade que nos fragiliza individual e colectivamente e, entre inúmeras implicações, compromete a sustentabilidade dos serviços de saúde já no curto prazo.
A segunda condição, mal valorizada e caracterizada, mas primordial, recebeu um nome mais genérico, indefinido e menos penalizador: "fadiga pandémica". A saturação ou fadiga pandémica faz que nos esqueçamos que ainda estamos em pandemia, da importância das medidas de prevenção e controlo e impele-nos a cometer os mesmos erros: não lapsos distantes de pandemias anteriores e sim descuidos recentes, registados há poucos meses e que tanto contribuíram para a evolução da situação epidemiológica e consecutivas ondas pandémicas. O défice de resiliência de uns e o excesso de individualismo de outros comprometem a resposta colectiva à pandemia, prejudicando e atrasando a recuperação social e económica das nações e do mundo.
Passado um ano e com a procissão ainda no adro em termos de vacinação (no plano nacional e internacional, em geral) sabemos, invocando o paradoxo socrático, que pouco ou nada conhecemos sobre o inimigo viral pelo que (parafraseando Sun Tzu) por cada vitória facilmente sofreremos uma derrota. Sabemos, ainda, que para essa lacuna contribui a nossa falta de preparação, em parte fruto do desconhecimento ou da desvalorização das nossas fragilidades. Temos, felizmente, como inquestionáveis a noção de que esta pandemia decerto não será a última e de que a ordenada, metódica e disciplinada preparação é algo basilar. Compreendemos inevitavelmente que essa preparação permitirá actuação imediata e incisiva ainda que em face da incerteza, com base no planeamento estratégico de cenários diversos. E não há porque esperar, ou seja, o combate em curso não deve apenas incidir sobre o presente, impondo-se que configure desde já o amanhã. Em última análise, a pandemia é uma prova de resistência e de cidadania e sobretudo da necessidade da valorização última e derradeira da importância da preparação e da organização com assento na ciência e no conhecimento.
Filipe Froes é pneumologista, consultor da DGS, coordenador do Gabinete de Crise Covid-19 da Ordem dos Médicos, membro do Conselho Nacional de Saúde Pública
Patricia Akester é fundadora do Gabinete de Propriedade Intelectual/Intellectual Property Office (GPI/IPO) e Associate, CIPIL, University of Cambridge
Os autores escrevem de acordo com a antiga ortografia