Requiem pelas livrarias extintas
Sempre que uma livraria encerra de vez as portas extingue-se o acesso aos livros, mas abre-se uma página de emoção e perda que corresponde ao sentimento de privação de todos os leitores que faziam daquele espaço um lugar de encontro com os livros, com os autores e com a felicidade sempre renovada de se encontrar o que se deseja e o que tantas vezes não se espera ter à mão de semear. Sei bem do que falo porque sou, mais do que um bibliófilo, um bibliómano, ou seja, alguém que construiu a memória dos lugares, das épocas e das pessoas também através dos livros das livrarias. Digo-o com emoção.
Ao longo de cinco décadas, a minha vida passou a ter uma geografia construída com base nas livrarias que frequentei e onde gastei todo o dinheiro que podia gastar na aquisição de livros nacionais e estrangeiros que considerava imprescindíveis. Recordo-me das velhas livrarias do Chiado e, nalguns casos, dos escritores de prestígio e de referência que via a conversar à entrada ou junto das estantes, conversando sobre literatura, sobre política e sobre as pequenas e grandes coisas do mundo. Conhecia-os pelas fotografias que saíam nos jornais, mas não tinha, nessa época, idade nem estatuto para me tornar interlocutor deles. O tempo consagrou alguns e deixou outros cair no esquecimento. Todos os dias, Raul Rego, com quem trabalhei no Diário de Lisboa e no República saía, perto das 11.30, para ir às livrarias do Chiado encontrar-se com os escritores seus amigos.
Recordo-me sempre da livraria Opinião, nas traseiras do jornal República, onde fui redactor durante três anos, vendo preparar e triunfar o 25 de Abril. Nos intervalos do duro trabalho redactorial, passei ali muitas horas procurando as novidades e convivendo com figuras como Álvaro Guerra, Fernando Assis Pacheco ou Mário Henrique Leiria, entre outros que, tal como eu, faziam dessa livraria o pequeno templo das suas alegrias e descobertas diárias. Era uma das nossas maneiras de sermos felizes. Esse tempo não se repete nem se reencontra para além das fronteiras sempre apertadas e difusas da memória.
Fui vendo fechar muitas das livrarias que deixaram um rasto de saudade e afecto na minha memória. Recordo-as comovidamente porque deixei nelas muito do melhor de mim como leitor, como escritor e como cidadão. Se pudesse, chorava ainda hoje por algumas delas como chorei por amigos perdidos e por animais que o tempo e a doença levaram. Quando essas livrarias fecharam as portas, ficou lá dentro uma emocionada parte de mim a que não regresso mais.
Mesmo no final do ano fecharam mais duas livrarias lisboetas que eu frequentava e de que muito gostava: a Book House no edifício do Saldanha Residence e a Aillaud & Lello, criada em 1931. O ano de 2017 despediu-se com estas duas perdas que se somaram as muitas outras nos anos recentes. Há um ciclo de vida e de relacionamento das pessoas e das pessoas com os objectos culturais que se transformou profundamente. Lamento mais estas duas perdas, pelos livros, pelos postos de trabalho extintos e pela distância a que esses livros, as novidades e os de ocasião, passaram a estar de mim. Duvido de que alguma vez nos reencontremos.
As muitas viagens que faço por imperativo profissional permitem-me conhecer excelentes livrarias em Paris, em Bruxelas, em Londres, em São Paulo ou em Washington. Algumas também fecharam. Recordo-me de, em 2008, no início da crise profunda que atingiu a Europa e o mundo, ter visto as livrarias que tinham acabado de encerrar em Dublin. Lembro-me de uma livraria de Washington que, tendo encerrado em 2012, tinha à porta um veterano da Guerra do Vietname com um pequeno cartaz que era também o retrato da tristeza de uma vida e de uma cidade num tempo de mudança irremediável e irreversível.
Devia ser criado um memorial que pudesse recordar a celebrar todas estas livrarias extintas e as saudades entranhadas de quem delas um dia ficou privado, perdendo tudo o que nelas existia, a começar pelos livros.
Recordo-me da excelente livraria Filigranes, em Bruxelas, que Vasco Graça Moura muito assiduamente visitava quando era eurodeputado.
Penso em países como a França, que tem cerca de 2500 livrarias em todo o território nacional. e acho que as autarquias e o governo deviam criar mecanismos de defesa e apoio aos livreiros, em nome da cultura e da qualidade da nossa vida. Se Mário Soares, um extraordinário bibliófilo, ainda estivesse connosco, sei que seria muito sensível e receptivo em relação a esta sugestão, porque bem sabia o que valem os livros no intenso dia-a-dia das nossas vidas apressadas. Como nos deixou há um ano, faço desta breve referência uma forma sentida de o homenagear mais um vez.
Escritor, jornalista, presidente da SPA