Rendas congeladas no país dos vistos gold

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Há semanas, conheci um empresário do ramo do imobiliário nascido em Nova Deli que se mudou do Dubai para Lisboa em novembro. Quando lhe perguntei porquê, respondeu que Lisboa é um dos lugares mais atrativos do momento para o seu mister. E está radiante com a sua aquisição mais recente: um último andar perto do arco da Rua Augusta com cento e tal metros quadrados. Custou-lhe 650 mil euros e conta vendê-lo por um milhão. Quando lhe perguntei como achava possível que alguém desse isso por um apartamento daquela dimensão e com aquelas condições (sem estacionamento, desde logo), respondeu: "É a localização. Tens de perceber que isto não é para portugueses." E acrescentou: "O centro da cidade já não é para vocês."

Um milhão de euros por um apartamento que há quatro anos estaria no mercado por, no máximo, 350 mil, e provavelmente ninguém quereria comprar? Claro que podemos suspeitar de que este simpático especulador imobiliário é doido. Mas não só temos indicadores internacionais de que Portugal é um dos países da UE nos quais o preço do imobiliário mais subiu em 2016 (7,9%), como, vivendo perto da Rua Augusta, vi em três anos um aumento brutal nos preços. Na minha rua, um prédio de três andares esteve em 2013 à venda por 400 mil euros; agora, seria uma pechincha por três milhões; há, na zona, quem alugue casas de 100 e poucos metros quadrados por 200 euros/dia.

Para isto contribuiu a conjugação de uma série de fatores: um dos IMI mais baixos da Europa; um enquadramento legal e fiscal que, motivado pela sede de investimento num cenário de crise, criou condições escandalosamente favoráveis à compra por não nacionais da UE e ao Alojamento Local em detrimento do arrendamento de longa duração; a explosão do turismo e o facto de Portugal ser um dos países mais seguros do mundo; a entrega de vistos de residência europeus em troca de compras imobiliárias acima de 500 mil euros (os vistos gold); uma conjuntura internacional favorável a este tipo de investimento, devido à rendibilidade historicamente baixa de ações e taxas de juro. E, claro, a total incapacidade, pelos responsáveis políticos, de antecipação das consequências da combinação de todos estes fatores - ou uma criminosa indiferença pelas mesmas.

Indiferença que se mantém naqueles que recebem cada proposta de regulação do setor com brados de "vão matar a galinha dos ovos de ouro", "foi o turismo que nos tirou da crise, querem dar cabo da retoma" e "é assim em todo o lado, o centro é para os ricos". No campo oposto estão os que falam dos turistas com raiva a raiar a xenofobia e de Lisboa central como se parte dela não tivesse sido considerada inabitável por várias gerações e o processo de "gentrificação" que tanto execram não fosse também constituído pelos próprios - chegados há pouco às zonas que agora querem defender "dos de fora".

Entendamo-nos: o turismo é bom e inevitável numa cidade tão deslumbrante como Lisboa. E é ótimo haver estrangeiros que querem nela viver e investir. Mas não se pode admitir que tal faça do centro coutada de especuladores e o despovoamento dos anos 70/80 se replique. É pois necessário encarar este terramoto com muito pragmatismo, abandonando velhos estereótipos.

Que sentido faz, por exemplo, que enquanto se discute como favorecer o arrendamento de longa duração se aprove uma penalização acrescida para quem o efetua há décadas, prorrogando, até 2022, o período de congelamento das rendas anteriores a 1990? Não só os argumentos apresentados pela esquerda são falsos e perversos - a lei já protegia idosos e deficientes, estabelecendo um teto vitalício, fixado em função do valor patrimonial, para as rendas nesses casos e garantindo subsídios estatais para quem não as pudesse pagar, o que significa que esta moratória serve apenas para poupar uns trocos ao Estado - como beneficia quem tem capacidade financeira para comprar prédios inteiros a senhorios depauperados e despejar os inquilinos a pretexto de obras, indemnizando-os com base nas rendas artificialmente baixas. É pois um presente perfeito para especuladores.

Acresce que, enquanto se fala em benefícios fiscais para o arrendamento de longa duração, a lei que recongelou as rendas não prevê qualquer desconto no IMI ou IRS para proprietários obrigados a fazer de santa casa. Estamos pois conversados sobre a inteligência e a justiça desta medida, símbolo perfeito da incapacidade de pensar a política das cidades e da habitação de forma integrada e coerente, sem complexos de trincheira. Os mesmos complexos que fazem adiar a revisão das regras do arrendamento de longa duração no sentido de este constituir um risco menor e portanto uma atividade mais atraente - o que implica facilitar despejos em caso de não pagamento -, ou estabelecer limites ao alojamento local (quotas por zona, direito de veto dos condomínios), pôr fim à vertente imobiliária dos vistos gold, mantendo-os só para atividades que gerem emprego direto e alterar a legislação sobre mais-valias de forma a penalizar quem, como o meu amigo indiano, está a especular com os preços. Em suma: é preciso adotar um mix de políticas vistas como "de direita" e "de esquerda", uma espécie de pacto de regime para a habitação. Assim houvesse visão, coragem e sentido do bem comum.

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