"Remoção de ovários e castração física nunca deveriam ser aceites para discussão"
"É como alguém propor a introdução da tortura." O constitucionalista Jorge Reis Novais, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, não tem qualquer dúvida: a proposta, contida numa moção debatida (mas não aprovada) no congresso do Chega, de retirar os ovários a mulheres que usem o direito, previsto na lei, de abortar até às dez semanas no Serviço Nacional de Saúde, é inconstitucional. "Trata-se de uma mutilação, algo que nem sequer deve ser discutido, de tão direta e ostensivamente violador dos princípios da Constituição. A esterilização forçada é uma prática contrária aos direitos humanos."
Da mesma opinião, de resto já várias vezes afirmada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, é o também constitucionalista e ex-deputado do PSD Jorge Bacelar Gouveia: "A proposta viola o direito fundamental à integridade física, consagrado na Constituição. A mutilação corporal como pena faz-nos regressar a outros tempos da história, quando as penas não eram privativas da liberdade mas corporais. "
Acresce que no caso não se estaria sequer, frisa este professor da Universidade Nova de Lisboa, a falar de "pena", já que a mutilação se seguiria ao acesso a um aborto legal: "Independentemente da minha opinião sobre a lei, houve um referendo em que o povo português se pronunciou e que tem de ser respeitado. Uma proposta como esta é uma tentativa inaceitável de dar a volta ao resultado."
De facto, na moção em causa, apresentada por Rui Miguel Prata Ferro Roque, entre 2007 e 2014 membro do Partido Nacional Renovador e em 2019 "diretor de campanha distrital" às legislativas pela Aliança, e que segundo o seu autor teve 59 votos a favor e 240 contra, lê-se: "Em relação à interrupção voluntária da gravidez, vulgo aborto, propomos que [a] todas as mulheres que abortem no Serviço Nacional de Saúde, por razões que não sejam de perigo imediato para a sua saúde, cujo bebé não apresente malformações ou tenham sido vítimas de violação, devem ser retirados os ovários, como forma de retirar ao Estado o dever de matar recorrentemente portugueses por nascer, que não têm quem os defenda (...)."
Resume Rui Silva Leal, penalista e membro do Conselho Superior do Ministério Público, para o qual foi proposto pelo PSD: "Está a dizer-se assim: o aborto praticado dentro das dez semanas é legal, mas é punido. E com mutilação. Como é evidente, o Estado não tem o direito de impor a ninguém uma mutilação, e muito menos como resultado de um ato legal. Fico espantado por ver tanta gente num partido político a defender estas atrocidades."
Também Bacelar Gouveia assume a sua "grande surpresa" com estas propostas. "Tenho muita pena, fui professor de André Ventura [líder do Chega]... Mas ver a mesa do congresso de um partido legalizado como o Chega a aceitar uma proposta destas à discussão deixa-me chocado. Os partidos têm órgãos e têm de respeitar a Constituição; ao visar representar o país na Assembleia da República, são eles que têm de a respeitar em primeiro lugar. A mesa do congresso nunca poderia aceitar à discussão uma proposta tão flagrantemente inconstitucional." O mesmo vale para a proposta de revisão constitucional publicitada esta terça-feira pelo Chega, na qual propõe a castração física de condenados por crimes sexuais: "É obviamente inconstitucional, nem deve ser admitida pelo presidente da Assembleia da República."
Paulo Otero, também constitucionalista, vai mais longe: "Não vale a pena perder tempo com propostas não sérias e violadoras de princípios civilizacionais básicos, de princípios jurídicos fundamentais de direito internacional, superiores à Constituição, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos."
É o caso da "extração dos ovários" contida na moção não aprovada no congresso do Chega e, segundo este professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, também da já mencionada proposta de revisão constitucional.
De acordo com a Lusa, o Chega quer que a Constituição passe a prever "a pena coerciva de castração química ou física" para "indivíduos condenados pelos tribunais portugueses por crimes de violação ou abuso sexual de menores, abuso sexual de menores dependentes e atos sexuais com adolescentes". Fonte do partido disse à agência que "a remoção dos órgãos genitais a sujeitos condenados por crimes sexuais só seria aplicada quando os métodos químicos se revelassem ineficazes e sempre com o consentimento do arguido e total informação dos procedimentos", mas também que "caso seja aceite pelo tribunal, a castração cirúrgica produzirá efeito de benefício na pena", tratando-se de "uma pena acessória, mas que pode também representar, se aprovado em lei especial, um caso de remoção voluntária".
Ora uma Constituição, declara Paulo Otero, "não consente tudo aquilo que se queira nela escrever, sob pena de inconstitucionalidade das normas constitucionais." E explica: "Há princípios que não estão na disponibilidade do Estado ou do legislador. Digamos que heterovinculam os estados. São princípios que estão por exemplo na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de proibição de penas humilhantes, degradantes e contrárias à dignidade. Se uma Constituição os violar a norma torna-se inconstitucional."
Assim é com a "castração física" requerida pelo Chega, diz o mesmo jurista. A contradição apontada com a Declaração dos Direitos Humanos existiria também, de resto, com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (artigo 3.º: "Ninguém pode ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes"), logo, seria passível de recurso para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, caso a justiça nacional não fizesse aquilo que Paulo Otero considera seu dever: "Os tribunais têm o poder e o dever de não aplicar leis iníquas. O juiz é o último guardião dos direitos humanos." E o facto de o não fazerem, lembra, pode fazer os juízes incorrer em responsabilidade penal: "Na Alemanha nazi, os juízes deveriam ter recusado aplicar as leis antissemitas. E alguns foram julgados em Nuremberga por não o terem feito."
Recorde-se que quando em 2019 o deputado único do Chega apresentou um projeto de lei propondo a castração química de condenados por crimes sexuais, o Conselho Superior de Magistratura, órgão máximo dos juízes portugueses, considerou que aquele violava a Constituição, sendo igualmente incompatível com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Igualmente iníqua e inconstitucional vê o catedrático outra proposta da moção citada (cujo texto, que estava disponível até à madrugada desta segunda-feira, foi entretanto retirado de acesso público): a que prevê "fim dos apoios sociais a famílias que integrem condenados mais do que uma vez por crimes violentos".
Não apenas está especificamente vedada na Constituição, no artigo 30.º, número 3 - "A responsabilidade penal é insuscetível de transmissão", como, lembra, a não hereditariedade das penas é um princípio que vem do constitucionalismo liberal. Ou seja, tem dois séculos no país: a Carta Constitucional de 1826, que eliminou "os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis" (número 18 do artigo 145.º), estabeleceu também a intransmissibilidade das penas: "Nenhuma pena passará da pessoa do delinquente. Portanto não haverá em caso algum confiscação de bens, nem a infâmia do réu se transmitirá aos parentes em qualquer grau que seja" (número 19 do mesmo artigo).
"A pessoa tem de ser tratada de acordo com os seus atos", vinca Reis Novais. "Trata-se da violação do princípio da dignidade e da integridade da pessoa humana." E também, ajunta Bacelar Gouveia, de um princípio basilar do direito penal, que é o princípio da culpa: "Até à Revolução Francesa as penas transmitiam-se de pais para filhos. A família não pode ser penalizada por algo que um dos seus membros fez."
Estas propostas "só não são mais chocantes", conclui Reis Novais, "por virem de um partido cujo programa prático é a subversão da Constituição".
Curiosamente, em 2013 André Ventura, na sua tese de doutoramento em Direito Penal, citava a preocupação do penalista e ex-provedor de Justiça Faria Costa com o que considerava "uma subversão do modelo constitucional" - a expansão do poder das polícias. Enquanto académico, Ventura lamentava a existência de "um clima social de aceitação - muitas vezes manipulado pelos media - face à adoção de medidas criminais e administrativas que só podem ser caracterizadas como altamente opressivas e restritivas dos direitos fundamentais dos cidadãos".
Em 2015, porém, se se congratulava ainda no Correio da Manhã por Portugal ter sido "dos primeiros países a abolirem a pena de morte e a prisão perpétua", já queria "trazer a debate", em texto no mesmo diário, a castração química de agressores sexuais.
Medida com a qual o académico Ventura, que num dos capítulos da tese de 2013 colocou como epígrafe a frase "o suplício não restabelece a justiça; reativa o poder", do sociólogo e filósofo francês Michel Foucault (autor do livro Vigiar e Punir), não podia estar mais em desacordo: "Um muito importante exemplo desta tendência punitiva e securitária é o abandono de salvaguardas processuais fundamentais que tinham o objetivo de proteger as pessoas de abuso no sistema legal, como os direitos dos suspeitos e condenados por crimes sexuais". E afligia-se com o que descrevia como "crescimento do populismo punitivo, ou populismo penal", caracterizando-o como "o processo pelo qual os políticos aproveitam, e usam para sua vantagem aquilo que creem ser a generalizada vontade de punição do público".