Relatório Minoritário

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A comissão independente para a investigação dos abusos sexuais da Igreja Católica apurou 512 casos. Os mesmos especialistas e independentes, por extrapolação, acreditam que, por defeito, haverá, pelo menos, através dos testemunhos diretos e indiretos e da quantidade de pessoas nomeadas pelos autores dos 512 relatos validados, cerca de 5000 mil abusados. Atrevo-me a extrapolar ainda mais e a acrescentar que serão, seguramente, mais de 50 mil. O trabalho da comissão vai "apenas" desde os anos 50 do século passado até aos dias de hoje. O relatório, ontem apresentado, com detalhe, minúcia e meridiana clareza, escancara uma porta que nunca antes tinha sido, sequer entreaberta.

O detalhe da descrição pormenorizada de alguns casos, a forma contida, mas emocionada, que os membros da comissão escolheram para expor ao público os relatos que escutaram das vítimas, o modo sensível e cru como desfiaram histórias, muitas contadas pela primeira vez em décadas, revela, apenas e só, a ponta de um iceberg. Por isso, acredito que, como na parábola, o número estimado seja de setenta vezes sete.

Para além do sofrimento, do trauma, da humilhação, das marcas que ficaram, para sempre, nas vítimas, é obsceno escutar o que diziam padres e outros responsáveis da Igreja católica a crianças. Muitas à guarda dos próprios. Que, sobre eles, detinham uma dupla relação de poder - a relação adulto/criança e a de cuidador/cuidado.

"Deixa ver se já tens pelinhos....", é um dos muitos depoimentos citados. É asqueroso, nojento, faz revoltar as entranhas e torna-se difícil de imaginar o grau de sofrimento das vítimas. Rapazes e raparigas. Quase sempre vindos de famílias pobres, pouco instruídas, desamparadas.

Oitenta por cento dos casos foram perpetrados por padres, homens sagrados, ungidos por Deus, pastores de um rebanho do qual deveriam cuidar e não abusar. Igrejas, capelas, confessionários, colégios e seminários, acampamentos e retiros, viagens de final de ano escolar, qualquer lugar, ainda que supostamente sacro, servia para que estes seres abusassem do seu poder, autoridade e persuasão.

"Já tens onze anos, deixa ver as tuas maminhas...".

Às mulheres e aos homens da Comissão Independente que ouviram, sistematizaram, publicaram e revelaram estes dados, cabe dar uma palavra de agradecimento, pela forma como conduziram o processo e pelas conclusões sólidas a que chegaram.

Os mesmos, alertaram, na sequência da experiência desta comissão que, infelizmente, o fenómeno dos abusos sobre menores ocorre em várias outras instituições: civis, militares e religiosas, e noutros locais onde há muito tempo de "permanência" de menores a cargo de adultos.

Tentando ultrapassar a crueza das palavras ditas pelas vítimas que decidiram testemunhar, a existência desta comissão deve-se, ainda que por pressão pública e depois de exemplos internacionais, à Igreja Católica.

Aberta a caixa de pandora, sim, importa perceber o que também aconteceu noutras instituições não eclesiásticas. Em escolas, clubes desportivos, associações. Para desculpar a Igreja, "porque os outros também fazem"? Nada disso. Para que cada tarado, abusador, infame, nojento, que não tenha ainda morrido ou cujo caso não tenha prescrito, possa ser investigado pela justiça. E punido.

É por isso que acredito que, dentro e fora do âmbito da Igreja Católica, o número de 512 é apenas uma pequeníssima parte da nossa vergonha enquanto sociedade, enquanto coletivo e enquanto seres humanos. O destapar de uma das faces mais negras da nossa sociedade ainda agora começou. E não parece que, se for levado a sério, algum dia o trabalho possa ser dado como acabado.

Jornalista

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