Relatório avisa espiões e dá recado a Silva Carvalho: a "razão de Estado" não está acima da lei

O último parecer do Conselho de Fiscalização dos serviços de informações salienta as obrigações legais a que estão sujeitos os espiões no seu trabalho, "sem espaços cinzentos" nem "clandestinos". No primeiro semestre de 2018 não detetou ilegalidades, tal como em nenhum ano anterior
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O livro do ex-diretor do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) foi lido à lupa pelo Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa (CFSIRP) - o último parecer, entregue esta semana à Assembleia da República, está cheio de recados, não só a Silva Carvalho, mas também aos espiões e responsáveis das secretas nacionais.

O alvo do Conselho é, principalmente, a tese do ex-super-espião, várias vezes referida no seu livro "Ao Serviço de Portugal", publicado no ano passado, segundo a qual os serviços de informações têm que funcionar muitas vezes à margem da lei, demasiado limitativa, na sua opinião, em nome da defesa do interesse de Estado e da defesa dos portugueses.

"Neste momento, e face à interpretação daquilo que é feito da lei, a grande maioria das atividades dos serviços seriam consideradas ilegal", disse ao DN, quando se preparava para lançar o livro, reforçando o que tinha dito em tribunal, durante o seu julgamento em 2016, de que "90% da atividade" dos serviços de informações é ilegal". No seu livro conta diversas situações e operações que denunciam essas ilegalidades.

Tudo isto terá desagradado profundamente aos fiscais das secretas, que zelam pelo cumprimento da lei na atividades dos espiões. Daí, no parecer publicado esta sexta-feira na página da internet, relativo ao primeiro semestre de 2018, vêm recordar alguns princípios básicos, mas que querem assegurar sejam refrescados nas cabeças de todos os quadros das secretas.

Fins não justificam os meios

O CFSIRP é composto por três membros eleitos pela Assembleia da República. É presidido por Abílio Morgado, que foi consultor para a Segurança Nacional do Presidente da República Aníbal Cavaco Silva, e tem como vogais Filipe Neto Brandão, deputado do PS e atual presidente da Comissão de Inquérito a Tancos e António Costa Rodrigues, advogado e ex-deputado do PSD..

"Haverá que infirmar-se quaisquer ideias que ainda possam existir de que os Serviços de Informações são serviços secretos para que tudo possam fazer em nome de quaisquer interpretações da razão de Estado", sublinham, numa alusão direta a Silva Carvalho. E continuam: "Nos regimes democráticos, não só a razão de Estado tem de ter legitimação democrática e não pode ser apropriável por juízos individuais, como toda a atividade de pesquisa, processamento e difusão de informações não pode ser passível de quaisquer instrumentalizações, estritamente sujeita, como está, à Constituição e à lei. Nos regimes democráticos, toda a atividade de pesquisa, processamento e difusão de informações não é algo de clandestino".

O Conselho assinala que "não sendo de excluir situações pontuais que reclamem ponderações particulares inerentes a institutos como a legítima defesa ou o direito de necessidade - em si mesmos consagrados na lei e que a dimensão institucional prevista na Lei Quadro do SIRP tem condições para escrutinar -, toda a atividade do SIRP de pesquisa, processamento e difusão de informações só pode ocorrer enquanto se mantiver dentro da fronteira que é fixada pela Constituição e pela lei, de forma clara, densa e exaustiva; e, portanto, sem espaços cinzentos que possam pretextar-se".

Neste parecer os fiscais lembram que "toda a atividade do SIRP de pesquisa, processamento e difusão de informações está, pois, sujeita a um duplo limite: o das finalidades tipificadas na lei, que limitam a utilização dos meios de atuação previstos na lei; o dos meios de atuação previstos na lei, que limitam a prossecução das finalidades tipificadas na lei". Tendo isso em conta, é frisado, "na atuação do SIRP, os fins não só não justificam os meios como os limitam concretamente".

Jorge Silva Carvalho foi condenado em 2016 a uma pena de quatro anos e seis meses de prisão com pena suspensa por violação do segredo de Estado, abuso de poder e ainda devassa da vida privada, por ter acedido à faturação detalhada do telefone do jornalista Nuno Simas. Em março de 2018, o Tribunal da Relação confirmou esta sentença.

Espionagem dentro da legalidade

Mas, aparentemente, não há motivos para alarme e estes avisos terão sido apenas para que não ficassem dúvidas. Da fiscalização que fez às secretas no primeiro semestre de 2018, durante o qual o foco principal foi para a atividade operacional, o CFSIRP, "não detetou a existência de atuações do Secretário-Geral ou dos Serviços de Informações incumpridoras da Constituição ou da lei ou, por qualquer modo, ofensivas dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos".

Elogia as lições aprendidas com o caso do ex-espião do Serviço de Informações de Segurança (SIS), condenado por vender segredos de Estado à Rússia: "pôde constatar-se a consolidação de mais sólidos procedimentos internos de segurança, que foram concebidos e concretizados na sequência de episódio público revelador da exigência de medidas de autoproteção mais apuradas", conclui.

De tudo quanto observou, atuando "de forma tão discreta quanto assertiva e intrusiva", o CFSIRP aponta aos responsáveis e ao governo algumas prioridades para o bom funcionamento dos serviços, que tinha já assinalado no parecer de 2017: reforço, nesta data já em curso, dos recursos humanos do SIRP, através de recrutamentos exigentes, na busca dos adequados perfis de competências e deontológicos; modernização urgente das tecnologias de informação e comunicação; continuação do apuramento progressivo das condições internas de segurança do SIRP.

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