O vibrante mural do artista Styler, numa empena na Praça Professor Valadares, em Castelo Branco, mostra uma batalha a cavalo entre as tropas portuguesas e as tropas francesas, tendo como pano de fundo o jardim do Paço Episcopal. Mas a realidade da primeira invasão francesa, em novembro de 1807, foi bastante diferente. Não só as tropas de Napoleão chegaram à cidade esfomeadas e abatidas pelas dificuldades do caminho às portas do inverno, como os portugueses tinham recebido ordens do príncipe regente e futuro rei D. João VI para não oferecerem resistência. O monarca e toda a família real fugiriam para o Brasil um dia antes de o general Junot chegar a Lisboa.."O mural é uma visão artística. As tropas francesas não chegaram com as fardas impecáveis. Chegaram abatidos pelo caminho, mal alimentadas e com poucos alimentos", contou Sérgio Ribeiro, técnico do município de Castelo Branco, numa visita guiada. A cidade tinha então cinco mil habitantes, as tropas eram mais de 20 mil e apoderaram-se das casas, da comida, pilharam igrejas e conventos, causando a eventual revolta da população. "Foi uma ocupação muito forte que provocou muita dor na cidade", acrescentou..As invasões francesas são apenas mais uma desculpa para partir à descoberta (ou redescoberta) da Beira Baixa, seguindo uma proposta da comunidade intermunicipal da região, que junta os municípios de Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Oleiros, Penamacor, Proença-a-Nova e Vila Velha de Ródão. E os Jardins do Paço, que serviram de pano de fundo para o mural de Styler e são atualmente um dos locais mais visitados da cidade que está a comemorar os seus 250 anos, um ponto de partida..O Paço Episcopal começou a ser construído no século XVIII pelo bispo da Guarda que viria a ser o primeiro bispo de Castelo Branco, D. João de Mendonça, tendo o jardim de estilo barroco e influência do renascimento italiano, onde se erguem 98 estátuas de granito, sido terminado pelo sucessor, D. Vicente Ferrer da Rocha. Foi este que abriu a casa para receber o general Junot, que fez do Paço o seu quartel-general. "Diz-se que as estátuas do jardim seriam originalmente de bronze e que este teria sido aproveitado pelos franceses para fazer balas de canhão, mas não é verdade, as estátuas são as originais", disse Ribeiro, convidando a visitar o Museu do Canteiro, em Alcains.."O grosso do exército terá ficado cerca de um mês na cidade, antes de seguir para Lisboa, mas mantiveram-se sempre aqui algumas tropas durante a ocupação, que durou quase um ano", explicou o técnico, lembrando que cada casa albergava entre 30 e 40 soldados. Se o Paço foi poupado às pilhagens, outros locais não tiveram a mesma sorte. Foi o caso da igreja de Santa Maria do Castelo, datada do século XIII, que serviu como cavalariça durante as invasões, acabando por cair em ruína. Foi entretanto recuperada, mas está fechada e vazia..Já o castelo, que nunca foi branco, e que fazia parte da linha de defesa do Tejo quando para lá do rio ainda era território mouro, acabaria por ser quase todo desmantelado no final do século XIX e início do século XX, quando já não era usado para defesa, restando apenas hoje duas torres e um troço do muro. "Autorizado o uso das pedras para as pessoas reconstruírem as suas casas, muito por culpa da primeira invasão francesa", explicou Sérgio Ribeiro. O nome Castelo Branco, já agora, tem a ver com a origem templária, já que o castelo foi construído no século XIII à imagem do Chastel Blanc que existia no território templário da Síria..A invasão francesa, com apoio espanhol, surgiu depois de Napoleão ter decretado um bloqueio continental que tinha como objetivo isolar a Inglaterra, a mais antiga aliada de Portugal. Impedido de continuar a manter a neutralidade no conflito que envolvia as duas potências, o monarca português fingiu seguir a ordem do imperador enquanto pedia ajuda ao seu velho aliado para transferir a corte para o Brasil.."A rota original da invasão não seria esta região, seria mais acima. Eles entraram em Salamanca, mas houve uma precipitação por parte de Napoleão diante das notícias da fuga do rei e da família real para o Brasil", referiu o técnico do município de Castelo Branco. Seguir pela região da Beira Baixa parecia o caminho mais curto até Lisboa, mas a verdade é que as dificuldades do terreno e a má condição do caminho atrasaram o percurso..Hoje o recurso ao GPS evita qualquer engano pelas estradas que serpenteiam a serra do Moradal (ou Muradal), que se ergue até 912 metros de altitude, e o percurso pedestre pelas pedras até ao miradouro do Zebro é um desafio pequeno. Um novo miradouro, projeto do arquiteto Siza Vieira, está previsto para o local onde os incêndios de 2017 e 2020 deixaram marca..De lá de cima é possível ver as dificuldades do terreno que as tropas francesas tiveram pela frente, mas para os mais aventureiros o município de Oleiros tem desenhados vários percursos pedestres (de menor ou maior dificuldade) que permitem conhecer melhor a região incluída no Geoparque Naturtejo da Meseta Meridional. Um deles é o Trilho Internacional dos Apalaches (na era da Pangeia, o continente único, havia ligação a essa cordilheira na América do Norte), que se estende ao longo de 37 km e é de dificuldade alta..Antes de se meter ao caminho, e para evitar a fome que as tropas francesas passaram, procure nos restaurantes da região pelo maranho. O prato típico terá surgido precisamente por altura das invasões, quando era preciso aproveitar todos os alimentos, sendo este enchido fresco que mais tarde se tornou iguaria de dia de festa confecionado com bucho de borrego ou carneiro, recheado com carne de ovino ou caprino, presunto, chouriço, arroz e hortelã..A revolta popular contras os franceses e o apoio que chegaria dos britânicos acabaram por ditar a saída das tropas de Junot de Portugal em outubro de 1808, sendo que Napoleão voltaria a tentar noutras duas ocasiões: a segunda invasão, em fevereiro de 1809, a Norte, que tinha como primeiro destino o Porto e que falhou logo em maio; e a terceira invasão, liderada pelo general Masséna, em julho de 1810, travada definitivamente em março de 1811 pelo exército luso-britânico comandando por Arthur Wellesley - o duque de Wellington que em 1815 derrotaria Napoleão em Waterloo -, graças às famosas Linhas de Torres..Décadas antes de as Linhas de Torres terem servido para defender Lisboa da terceira invasão francesa, já a Linha Defensiva das Talhadas-Moradal estava preparada para travar os invasores franceses e espanhóis. Foi criada no âmbito da Guerra dos Sete Anos (1756-1763) por ordem do marechal-general conde de Shaumburg-Lippe, estratega contratado para comandar as forças portuguesas que "150 anos de paz tinham deixado totalmente desorganizadas", contou o arqueólogo Mário Monteiro.."O conde, que tinha o quartel-general em Abrantes, percorreu esta região e definiu este sistema defensivo entre os rios. A sul estava o Tejo, a norte o Zêzere, lá ao fundo a serra do Moradal e atrás a das Talhadas, ambas muralhas naturais", explicou no Forte das Batarias (no núcleo da Catraia), no concelho de Proença-a-Nova, próximo do qual passava a Estrada Real. Este forte e a linha de defesa seriam reaproveitados e reconstruídos pelo Marquês d'Alorna, para a chamada Guerra das Laranjas (na qual Portugal perdeu Olivença), em 1801. "Muitos consideram na realidade a primeira invasão francesa. Napoleão forçou os espanhóis a avançar, mas eles entraram por Elvas, tiveram umas escaramuças e regressaram a casa. Napoleão ficou fulo", contou o arqueólogo. O rei espanhol Carlos VI era pai de Carlota Joaquina, mulher do príncipe regente português..O Forte das Batarias ganhou nova vida graças aos trabalhos de Mário Monteiro, que sentiu que era Natal quando foi convidado pelo município para estudar estes vestígios e que desde 2007 tem feito trabalho de campo com ajuda de estudantes nacionais e internacionais. A bateria, uns metros abaixo, ainda está a ser alvo desses trabalhos, mas o forte já foi escavado e musealizado com apoios locais. "A estrutura de metal foi feita por uma empresa da região por uma fração do preço que era pedido por uma outra", contou, explicando que quando foi preciso trabalhar a pedra que preenchia o fosso junto à entrada (uma das alterações feitas em 1801 para permitir a retirada rápida das peças de artilharia ali colocadas) então recorreu-se ao trabalho do calceteiro da câmara..O forte, com as suas três canhoeiras, era uma visão imponente para quem quisesse invadir e Mário Monteiro não esconde não morrer de amores por D. João VI, que deu ordem para não resistir aos franceses em 1807. "Um comandante francês quando chegou lá abaixo e viu a estrutura do forte disse que com dois mil homens nesta posição e a campanha estaria perdida", referiu..Quase na outra ponta da serra das Talhadas, fica Vila Velha de Ródão, ponto fulcral para a defesa do Tejo. A caminho do castelo do Rei Vamba, cuja torre medieval do século XII foi recuperada antes da viragem do milénio, existem também vestígios de uma bateria, sendo que outros encontram-se espalhados pelas encostas circundantes, com o Alentejo já do outro lado do rio. A Rota das Invasões, um percurso a pé de oito quilómetros na zona, permite conhecer alguns desses pontos e ter uma vista panorâmica para o monumento natural das Portas de Ródão..susana.f.salvador@dn.pt.O DN viajou a convite da Comunidade Intermunicipal da Beira Baixa