Redescobrindo Orson Welles como... pintor

O autor de "O Mundo a Seus Pés" deixou um legado impressionante de desenhos e pinturas. O crítico irlandês Mark Cousins teve acesso ao seu espólio, com ele construindo um fascinante retrato que é também um belíssimo exercício cinéfilo.
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Que bom saber que (ainda) há quem cultive um gosto do cinema que não cedeu à vertigem do marketing e, em particular, não esquece que os filmes têm uma história longa, complexa e fascinante. O crítico irlandês Mark Cousins, por exemplo, é um protagonista desse gosto, continuando o seu paciente trabalho de revisitação de filmes e cineastas. Assim acontece no magnífico Os Olhos de Orson Welles (que foi, em 2018, um dos grandes acontecimentos da secção de Clássicos do Festival de Cannes).

É provável que o leitor conheça a monumental História do Cinema: Uma Odisseia, obra de cerca de 15 horas em que Cousins retraça a evolução da criação cinematográfica, do período mudo às mais recentes convulsões tecnológicas (entre nós disponível em DVD, ed. Midas). Os Olhos de Orson Welles aplica uma estratégia semelhante. Trata-se de revisitar os marcos emblemáticos de um determinado universo - afinal de contas, Welles é autor de clássicos como O Mundo a Seus Pés (1941), A Sede do Mal (1958) ou O Processo (1962) -, ao mesmo tempo mostrando e demonstrando que, num certo sentido, continua tudo por descobrir.

Acontece que, graças à colaboração de Beatrice Welles, filha do cineasta, Cousins teve acesso a uma coleção imensa de desenhos e pinturas que Welles foi produzindo ao longo da sua vida profissional e, em boa verdade, privada. Do simples esboço a lápis aos tratamentos mais elaborados, Welles não só "antecipou" personagens, guarda-roupa e cenários dos seus filmes como foi criando imagens resultantes da observação dos lugares por onde passava e até mesmo dos espetáculos a que assistia.

O resultado é um belíssimo exercício cinéfilo. Dir-se-ia um documentário capaz de integrar as nuances de um ensaio crítico e as perplexidades de uma demanda filosófica. Isto porque, além do mais, Cousins organiza Os Olhos de Orson Welles, não como uma "descrição", antes em forma de carta dirigida... ao próprio Welles: "Será que os teus esboços, caro Orson, revelam o teu inconsciente?"

Outras estreias de cinema esta semana:

* HIGHLIFE - Claire Denis, cineasta francesa do mundo do melodrama, arrisca agora no domínio da ficção científica. Com Robert Pattinson e Juliette Binoche, o retrato de uma nave em que ocorrem experiências sobre a "origem da vida" acontece em ambientes sugestivos, mas vai-se perdendo numa simbologia algo redundante. Projeto interessante, resultados não tanto.

* PIRANHAS - OS MENINOS DA CAMORRA - Nova adaptação de um romance de Roberto Saviano (autor de Gomorra, filmado por Matteo Garrone em 2008), neste caso tendo como elemento central um grupo de adolescentes enredados na violência das famílias rivais do submundo de Nápoles. Simples e direta, a realização de Claudio Giovannese confirma a fidelidade do melhor cinema italiano à sua tradição realista.

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