Apesar do poder do marketing dos filmes de super-heróis e, em muitas salas, do afunilamento da oferta, não se pode dizer que o mercado português viva alheado do trabalho de alguns dos mais importantes cineastas contemporâneos, sobretudo europeus. É o caso do francês François Ozon (nascido em Paris, em 1967) que continua a ser uma presença regular no nosso circuito comercial - agora com o magnífico, insólito e sedutor Peter von Kant, filme que, em fevereiro, integrou a secção competitiva do Festival de Berlim..O título remete para As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972), realizado pelo alemão Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) a partir da sua peça homónima. Aí encontrávamos como figura central, interpretada por Margit Carstensen, uma criadora de moda a viver as convulsões de uma teia de paixões desencontradas em que todas as personagens são mulheres. Ozon "transforma" Petra em Peter, não exatamente para fazer a versão "masculina" do drama de Fassbinder, antes para propor um jogo de revisão e reinvenção em que, para todos os efeitos, persistem duas fundamentais linhas de força: Peter experimenta também os movimentos passionais como um jogo (teatral, sem dúvida) que implica, transporta e desafia a verdade do amor; mais do que isso, as peripécias das suas "lágrimas amargas" levam-no a avaliar até que ponto o amor é (ou talvez não seja...) uma forma de possuir o ser amado..A ação tem lugar em Colónia, em 1972, portanto no ano do filme de Fassbinder. Peter é também um artista, mas do mundo do cinema. Realizador de sucesso, vive no seu apartamento entre angústias existenciais e delírios de grandeza. Duas figuras paradoxais pontuam o seu quotidiano: o silencioso Karl, assistente que Peter trata de modo grosseiro e humilhante, mesmo se é ele que lhe escreve os argumentos dos filmes, e Sidonie, musa que protagonizou diversos momentos da sua obra e, agora, o visita regularmente. Numa dessas visitas, Sidonie apresenta-lhe o jovem Amir - Peter apaixona-se loucamente por Amir, com ele começando a viver uma relação que parece ser a realização de uma utopia tão carnal como romântica....Se é possível superar o esquematismo da sinopse, talvez seja importante chamar a atenção do leitor para a ambivalência em que tudo isto acontece. Por um lado, Peter von Kant está longe de ser uma homenagem "copista" do filme de 1972; por outro lado, aquilo que em Fassbinder nos surgia como drama enredado em desejos enigmáticos e êxtases suspensos "renasce", com Ozon, num registo de metódico distanciamento, dir-se-ia uma tragédia sempre evitada pelos sobressaltos de uma sofisticada comédia..Ozon está também a evocar a própria filmografia, já que uma das suas primeiras longas-metragens, Gotas de Água sobre Pedras Escaldantes (2000), se baseia numa peça de Fassbinder, igualmente construída em torno da relação de dois homens com grande diferença de idades. Tal proximidade está longe de ser apenas "temática", sendo sobretudo conceptual e figurativa. Num caso como noutro, a assumida teatralidade do cenário acaba por se confundir com um ambíguo gesto nostálgico: Peter von Kant é um filme apostado em redescobrir as delícias de um cinema enraizado nos artifícios do estúdio - tudo, mas mesmo tudo, do impecável rigor geométrico do espaço até às mais simples manifestações naturais (a neve a cair lá fora...), é tratado através da sensualidade de tais artifícios..Como sempre em Ozon, a vibração do drama (ou da comédia) envolve um minucioso trabalho com os atores, a começar, claro, no papel de Peter, por esse gigante do cinema francês que é Denis Ménochet (vimo-lo, por exemplo, em Custódia Partilhada, produção de 2017 assinada por Xavier Legrand) e Khalil Gharbia, representando o misto de ironia e insolência que define o "fantasma" romântico que é Amir. Sem esquecer, claro, Stefan Crepon, interpretando com minuciosa contenção o silêncio e a mágoa do abusado Karl..O contraponto das atrizes é tanto mais importante quanto, para lá do seu talento, "transportam" memórias vitais. Hanna Schygulla, no papel da mãe de Peter, é uma "mensageira" de muitas emoções cinéfilas - participou em mais de duas dezenas de títulos de Fassbinder, incluindo As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. Interpretando Sidonie, Isabelle Adjani reencontra algo da dimensão mitológica do seu lugar na história do cinema francês - a sua composição em A História de Adèle H. (1975), de François Truffaut, poderá servir de memória simbólica, até porque Ozon é um legítimo herdeiro do gosto romanesco de Truffaut..Para que as memórias reencontrem a sua utópica harmonia, vale a pena recordar que a canção que Peter escuta nos momentos iniciais do filme - Jeder tötet was er liebt, interpretada por Sidonie/ Adjani - foi composta por Peer Raben, a partir de um poema Oscar Wilde, para a banda sonora do título final de Fassbinder, Querelle (1982), onde é cantada por Jeanne Moreau. E também que o quadro Midas e Baco (c. 1630), de Nicolas Poussin, que domina o espaço em As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, reaparece numa parede do apartamento de Peter von Kant..dnot@dn.pt