Recheados, em sopa ou no arroz. Sete formas de declinar tomate
Na vertente doce, basta pegar num tomate coração-de-boi colhido numa das muitas hortas prodigiosas que matizam o país estival, levá-lo à boca e trincar, para perceber a gulodice de que falamos. Na vertente aquosa, é o maravilhoso e nutritivo suco que apreciamos e que em copiosidade perde apenas para o pepino e a melancia.
O convite para dançar entre os dois pólos é típico e único do Verão, e dançamos com muito prazer, ao som de receitas e preparações que desde a integração nas dietas mediterrâneas pauta alegremente cardápio e imaginário nacionais. Aqui estão sete exemplos do que fazemos com o tomate, atestando-se a sua enorme flexibilidade.
1.Sopa de tomate
Puxa-se um estrugido bem forte de cebola, azeite e alho até alourar, junta-se tomate maduro cortado em pedaços, jervas a gosto - orégãos, poejo, ou hortelã da ribeira -, fervilha com um golpe de vinagre e outro de vinho branco e está a alquimia cumprida. Há quem lhe junte batata mas não faz falta, já o mesmo não se pode dizer do ovo escalfado que é fundamental. A sensação de satisfação quando não mesmo de robustez que uma sopa de tomate provoca em mim não tem comparação e quando a como no Chana do Bernardino, na Aldeia da Serra (Redondo) só tenho tempo para encontrar um sofá para a sesta imediata. Bacalhau, carapau, pimento e demais assessoria colocam esta sopa aparentemente simples entre os segredos mais bem guardados da nossa cozinha. Bem triturada é gloriosa e configura refeição completa. Um vinho branco de base Fernão Pires com mais de três anos é parceiro valente.
2.Gaspacho andaluz
Esta sopa fria não conhece calor nem lume e vive do tomate no seu mais pleno prodígio. Gosto do gaspacho que resulta do processamento do tomate chucha depois bem gelado e "regado" com brunesas fininhas de ovo cozido, pimento verde, cebola, alho, presunto entre outros, entretanto também triturados e integrados no caldo que invariavelmente se serve gelado. Explora o lado refrescante do fabuloso produto da horta sobre o qual nos debruçamos e como o nome indica, teve origem na província espanhola da Andaluzia. O gaspacho à alentejana não tem o tomate como base, é antes de tudo uma açorda à alentejana, começando por ser um piso de alho e ervas frescas, que incluindo poejo ou hortelã da ribeira e devidamente refrescado configuram a frescura certa para a canícula. Para estas cruezas deve escolher-se um Arinto novo sem madeira.
3.Arroz de tomate
Não tenho vergonha de assumir que prefiro este arroz quando é processado nas cozinhas da minha eleição, o que faço em casa, apesar de muitas versões e variações, nunca me satisfez. E preciso muito de um bom arroz de tomate, sobretudo para acompanhar filetes de pescada ou bacalhau fritos. Uma grande vénia a Maria de Lurdes Graça, do Manjar do Marquês, em Pombal, que faz o melhor arroz de tomate de todos. Além da magia das suas mãos e do treino aturado da cozinha nesta difícil arte, na altura em que o tomate está bom - brilhante o de rama, para o efeito, já agora - compram maciçamente e armazenam em grandes câmaras de frio. Fica o tomate garantido para todo o ano, e a nossa satisfação também. Há que procurar um vinho verde da casta Loureiro de Ponte de Lima para fazer plena justiça às frituras orladas por arroz de tomate.
4.Tomates recheados no forno
De forma quase obsessiva, desde os meus vinte anos que experimento as mais diversas combinações desta maravilha da cozinha doméstica. E francamente não entendo por que as cozinhas de produção em restaurante não olham para ela com um pouco mais de criatividade. O tomate de rama não demasiado maduro tem o balanço certo entre robustez da casca e copiosidade dos sucos, oferecendo-se sem demasiada resistência no prato, à mesa. Numa noite feliz, em casa de uma grande amiga, cozinhei para a grande actriz brasileira Regina Duarte que ficou encantada com a simplicidade dos tomates recheados com alheira de caça, dos vários pratos que compunham o jantar foi de longe o que mais a impressionou. Incrivelmente fácil de fazer e o resultado é sempre bom. Aconselho um Alfrocheiro novo do Dão com pouca ou nenhuma madeira.
5.Salada de tomate
Não temos coisa mais hortelã que uma salada de tomate coração-de-boi cortado em fatias grossas, a toda a largura. Orlada por cebola de semente portuguesa crua fatiada bem fina, conjuga bem com queijos diversos e frutos secos - caju ou avelãs, por exemplo - e toda a panóplia de picantes de que se goste. Bom azeite virgem extra e orégãos secos elevam bastante o índice de prazer desta salada. Clama por sardinhas assadas na brasa, e elas por ela, bem melhor ligação que os vezeiros pimentos assados, há que dizê-lo. As ligações vínicas possíveis são muitas e matizadas mas a sublimidade está, pasme-se, no vinho da Madeira novo - 3 a 5 anos - da casta Sercial. Se a empreitada incluir as sardinhas então é mesmo em cheio. Por bizarro que possa parecer, há pelo menos que provar, a surpresa está garantida.
6.Molho de tomate
Estruturante na cozinha italiana, está presente em quase todas as cozinhas do mundo, tanto que ocupa parte importante dos lineares dos supermercados, em versões prontas a utilizar. Estamos no lado doce do tomate, exacerbado pela cozedura a temperaturas em volta de 80ºC, num processo que se chama confitar. Trabalhando abaixo do limiar de ebulição da água, os açúcares transformam-se em cadeias moleculares mais complexas e compridas, conservando o tomate numa espécie de auto-conserva. O termo vem da pastelaria, em particular da transformação de frutos em conservas por acção do calor. Era o que outrora acontecia nas confeitarias. Claro que podemos cingir-nos aos molhos de tomate comercialmente disponíveis, mas é muito bom desenvolvermos o nosso próprio molho. É um trabalho que requer muita paciência e que sentimos sempre como recompensa. E a partir deste molho podemos atrever-nos a avançar para o nosso próprio ketchup! Dá que pensar e apetece sempre.
7.Doce de tomate
Marcou-me profundamente o dia em que a Beatriz, professora da primária do meu colégio, perguntou quem nunca tinha provado doce de tomate e eu fui o único pôr o dedo no ar. A minha relação com o tomate era como a da maioria dos meus colegas, praticamente inexistente. E lembro-me de imaginar como seria possível que o tomate, amargo e ácido, pudesse dar um doce digno desse nome. No dia seguinte, a Beatriz levou para a sala de aulas um boião de doce tomate feito por ela, e ficámos todos absolutamente encantados. Pois é, o hortícola que é também fruto e legume dá uma das melhores compotas que há. Por muito que venhamos a entender como e por que acontece, trata-se de uma espécie de passes de mágica, tudo o que ao tomate diz respeito. E há muito ainda por conhecer e experimentar. Desde os milhares de tipos de tomate em produção na América do Sul até à integração na alta cozinha, as perplexidades são muitas. Na próxima passagem pelo supermercado, se comprarmos um tomate de cada variedade estamos já a começar a viagem interminável e deliciosa de descoberta desta glória da nossa alimentação.