Rajoy ganha mas é aborrecido que se farta

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Há dias realizaram-se em Espanha dois conclaves políticos muito interessantes. O do Partido Popular, a direita atualmente no poder, e o do Podemos, homólogo do Bloco de Esquerda de Portugal, que chegava ao Congresso profundamente dividido entre, podemos dizer assim, bolcheviques e mencheviques, e no qual estava por elucidar a estratégia com a qual estes monstros querem devorar o socialismo convencional e assaltar o poder. Antes de se conhecer o resultado, um amigo perguntou-me quem queria que ganhasse o Congresso do Podemos. Disse-lhe que, obviamente, Pablo Iglesias. Mas não porque acredite que é muito diferente de Íñigo Errejón, o leninista brando que disputava a liderança. Os dois converteram a inveja e o ressentimento no eixo da sua ação política, mas com Errejón, que defendia uma presença vigorosa nas instituições e cujo desejo é fazer a revolução desde dentro do sistema, a possibilidade de uma frente popular - ao estilo da que provocou a nossa infeliz guerra civil - para afastar do poder a direita estava mais próxima. Com Errejón à frente do Podemos, a cumplicidade com o Partido Socialista, que ao fim e ao cabo defende a mesma causa dos deserdados, dos pobres contra os ricos, dos que, podendo valer por si mesmos, preferem cortar a passagem aos que desejam prosperar à base do esforço e do sacrifício pessoal, dos partidários de uma sociedade igualitária que toma como medida os menos diligentes e os mais burros, dos que, para resumir de forma clara, estão contra a ambição e a excelência, do indivíduo a favor do Estado, ter-se-ia convertido num verdadeiro perigo. Pelo contrário, com Iglesias à frente do Podemos, como continuará a ser depois da sua vitória esmagadora no Congresso, esta ameaça dissipou-se. Iglesias é um energúmeno. Não quer deputados, mas ativistas. A sua pretensão é estar na primeira linha de todos os conflitos sociais alimentando os instintos mais primários e mesquinhos das pessoas irresponsáveis que pensam que o Estado pode e deve resolver os problemas que a maioria das vezes são da sua exclusiva responsabilidade. Quer situar o centro do protesto nas ruas e depois utilizar o Parlamento para fazer teatro e montar numerozinhos iconoclastas e vergonhosos como o de uma das suas deputadas a dar de mamar ao filho no Congresso ou de ele mesmo beijar nos lábios um dos seus cúmplices para escárnio da dignidade parlamentar e do conjunto do país que ainda tem um pouco de senso comum.

O jornal espanhol El País, o mais vendido da nação, que mais que o exegeta dos socialistas é o guia espiritual do seu caminho para recuperar o poder o mais rapidamente possível, disse acertadamente depois da vitória de Iglesias: "Se há uma coisa que é certa é que o PSOE não poderá contar com o Podemos para governar, nem sequer como apoio parlamentar", escreveu. O argumento é muito simples de perceber. O objetivo genuíno do Podemos governado por Iglesias não é aliar-se com o Partido Socialista mas substituí-lo como alternativa de poder. E isto sabem muito bem tanto o atual presidente da comissão gestora socialista, Javier Fernández, que conhece a fundo a partir da presidência das Astúrias o baixo caráter moral dos acólitos de Iglesias, como Susana Díaz, que lida com eles desde a presidência da Andaluzia, e que muito provavelmente será a nova secretária-geral do PSOE quando forem convocadas as primárias e chegar o seu momento. Não o sabe o senhor Pedro Sánchez - que tem aspirações a recuperar a liderança - ou não lhe importa, mas neste caso porque é um bobo solene, a reedição mais iluminada e acabada de Zapatero, a quem Rajoy tratou dessa forma na sua altura.
Rajoy é outro dos beneficiados, certamente o maior, da deriva radical do Congresso do Podemos. A vitória da revolução acomodada de Errejón teria resultado num contratempo para os seus planos. A opção do doberman, de Pablo Iglesias, era notavelmente melhor. É a que assegura uma legislatura relativamente tranquila, que não nos levará a nenhum bom porto, já que a possibilidade de aprovar alguma reforma que sustente e até impulsione a economia espanhola equivale a zero, mas que lhe servirá para colmatar o prurido pessoal de poder igualar a marca de Aznar na Moncloa e até a do hediondo Zapatero. Mas pouco mais do que isso. Ao contrário do Congresso do Podemos, que tinha o interesse do confronto entre Iglesias e Errejón, o do PP foi uma infame tranquilidade. Já sei que os mercados, que a economia e até que a opinião pública agradecem a previsibilidade dos líderes políticos e dos partidos que os apoiam, sobretudo tendo em conta a confusão reinante na esquerda espanhola. Mas modestamente, eu ainda tenho outras aspirações. Teria gostado que o Congresso do PP tivesse sido o caldeirão em ebulição dos debates e das ideias que merece uma sociedade que enfrenta desafios tão importantes como o protecionismo comercial, a crise que atravessa a União Europeia depois do brexit, o impulso do populismo atrás da imigração ou do movimento dos refugiados, ou, sem precisar de ir mais longe, a sustentabilidade de um Estado de Bem-Estar que no meu país deita água por todos os lados. Mas nada de nada. O PP saiu do seu Congresso como se nada no mundo tivesse a menor importância, unido mais do que nunca em redor de Rajoy, aborrecido que se farta, e claramente fortalecido - em comparação com a precária situação que atravessa a esquerda espanhola - como a principal agência administrativa do país, como a oficina de reparações mais solvente, o mais oleado e tecnicamente preparado para evitar qualquer acidente, o que oferece a melhor relação qualidade-preço. Mas ao mesmo tempo, como a pior fábrica de ideias de todos os tempos! Para o dizer mais claramente, não há ideias na direita espanhola, apenas a ambição desenfreada de ocupar todos os espaços e, de forma descarada, usurpar o campo de jogo da social-democracia. No seu afã por se converter numa máquina de poder com vontade de permanência, no PP há espaço para tudo: o humanismo cristão, o reformismo de centro, o centro contrarreformista, o conservadorismo mais plausível e, encostado a um canto, para que ninguém se chateie muito, até o liberalismo económico. É a burocracia em estado puro. Ou, se quisermos dizer de uma forma mais correta, a social-democracia mais forte dos últimos tempos. Também acertava o jornal El País quando escreveu por estes dias: "O PP tinha a oportunidade de definir um programa para Espanha, de demonstrar que dispõe de uma visão de futuro para um projeto coletivo. Renunciou a fazê-lo." Não posso estar mais de acordo. É totalmente certo, porém, verdade seja dita, pelo menos não definiu o projeto de Espanha que gostaria aos socialistas que o El País pastoreia. Rajoy ainda não chegou aí, não baixou a linha vermelha, mas, na minha opinião, a esquerda devia conformar-se. Exceto pelo facto natural de o PSOE desejar recuperar o poder, e vai lutar até à exaustão para o conseguir, a realidade é que o PP de Rajoy pratica o socialismo quase tão bem como eles.

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