"O João é o melhor amigo do Tiago. O João gosta muito de estar com o seu melhor amigo", lê-se no quadro da sala de aula, onde estão sentados cinco alunos. "Não precisamos de dizer tantas vezes o nome João", adianta a professora de Português. Os substitutos chamam-se pronomes, mas eles ainda não o sabem. O que sabem é apenas que o João também pode ser "ele". "Ele gosta muito de estar com o seu melhor amigo", lança João Moleiro, de 17 anos. E a professora Filomena imediatamente recompensa o esforço: "Boa, Jonnny." O que é diferente aqui, na Escola de Segunda Oportunidade de Samora Correia, Benavente, é que "os professores têm mais tempo para falar com os alunos", diz o aluno. Jonny integrou este projeto depois de vários anos de chumbos. Antes, nem sequer ia às aulas, agora diz sem hesitar: "Quero continuar a estudar, fazer o 12.º ano, para poder ter um emprego decente.".Minutos antes de a aula começar, no piso inferior do edifício - que antes dava lugar a uma escola básica da localidade -, alguém deixava o YouTube aberto no único computador disponível na sala de convívio. Dali, fazia-se soar um rapper português contemporâneo, outras vezes uma qualquer letra pop brasileira, deixando adivinhar que esta não é uma escola como todas as outras..Aqui, a batalha "não é o boné que eles não se lembram ou não querem tirar dentro da sala de aula", a música que ouvem em alto volume nos corredores ou a inquietação dentro de uma aula de uma hora. "O que criamos aqui é um espaço em que determinadas problemáticas deixam de importar, para nos dedicarmos ao mais importante" - aprender alguma coisa -, explica o diretor da escola, Rui Domingos..Foi a 23 de setembro deste ano que a Escola de Segunda Oportunidade de Samora Correia abriu portas, com 24 alunos (entre os 16 e 18 anos, a fazer equivalência para o 6.º ou 9.º ano de escolaridade), 16 professores e ainda uma psicóloga - cujo trabalho passa também por educar as famílias destes jovens. Neste edifício, lecionam-se dez disciplinas: Português, Inglês, Matemática, Ciências Sociais e Naturais, Educação Tecnológica, Oficina de Artes, Dança, Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), Educação Física e Jardinagem..A partir daqui, os alunos têm várias saídas: regressar ao ensino regular, seguir para cursos profissionais ou integrar o mercado de trabalho..A resposta a uma batalha antiga.Mas o que existe nesta escola é fruto de uma semente plantada ainda no século passado. Em 1998, Portugal debatia-se com uma taxa de abandono escolar precoce na ordem dos 46,8%, a pior entre os membros da União Europeia, que também lutavam contra estatísticas preocupantes..Por isso, neste mesmo ano, foi criada a rede europeia de 2nd Chance Schools (de escolas de Segunda Oportunidade), financiada pela Comissão Europeia, para fazer face aos números. Portugal, como outros países, recebeu neste mesmo ano um projeto-piloto desta oferta educativa, no Seixal. Mas o projeto não resistiu para contar uma história de sucesso..É em Matosinhos, no Porto, que começam a contar-se histórias de sucesso. Dez anos depois da criação da rede europeia, em 2008, esta localidade do norte do país alinhou na missão e edificou a primeira Escola de Segunda Oportunidade (E2O) no país, ainda ativa e desde então vista como um projeto inovador na luta contra o abandono escolar precoce. Passaria mais outra década até que outras cidades resolvessem seguir as mesmas pisadas: neste ano, Samora Correia e Ermesinde (em Valongo)..Foi através da Fundação Padre Tobias, uma instituição particular de solidariedade social de Samora Correia com trabalho diário junto das famílias da localidade, que o projeto aqui nasceu. "Há claramente aqui um ciclo: os avós não tiveram formação, os pais também não e todas as gerações seguintes tendem a seguir este caminho. Quisemos quebrar o ciclo", explica Rui Domingos. O agrupamento de escolas sinalizou os alunos em risco de abandono escolar, selecionou os professores mais adequados para o projeto e a Escola de Segunda Oportunidade ganhou vida em Benavente, com o apoio do Ministério da Educação e da autarquia..Neste ano, em agosto, o governo oficializou a institucionalização das Escolas de Segunda Oportunidade em Portugal. A mudança "vem ajudar na estabilidade destas escolas", quer "no financiamento, porque antes era preciso andar sempre a concorrer a fundos comunitários", quer na sobrevivência das mesmas, diz o diretor do projeto de Samora Correia..Atualmente, a taxa de abandono escolar precoce em Portugal - a percentagem da população dos 18 aos 24 anos sem ensino secundário e que se encontra em situação de abandono - situa-se nos 11,8%, a taxa mais baixa de sempre alguma vez atingida no país..Abandono escolar em Portugal Infogram.Uma questão de linguagem.A professora Filomena não o mencionou na aula, mas a sua escola está para o ensino regular como "ele" para o nome "João", tal como ensinou aos seus alunos. Nasceu precisamente como um pronome para as escolas que deixaram tantos alunos ao abandono, em risco de exclusão social, e da qual estes mesmos jovens acabaram por desistir. "São rapazes e raparigas que não tinham sucesso na escola, que chumbaram já bastante, que faltavam e que passavam muito tempo na rua", diz Rui Domingos..No entanto, ao contrário do que acontece com os pronomes, não partilham o mesmo significado. Nesta escola "é retirada toda a carga negativa e tudo o que se sabia que antes falhou", explica o vice-diretor, Paulo Eira. Os testes não são testes, são "fichas de trabalho". As aulas são aulas, "mas eles fugiram delas", por isso, chamam-se "espaços de formação". Fugiram daquilo que os professores representam, "então aqui são formadores"..Paulo não espera "milagres", confessa. Quer apenas dar-lhes uma oportunidade para continuarem a aprender, num ensino que os olha à margem das suas dificuldades e contextos sociais e familiares. "Nós temos de lhes dar o direito a ter, se quiserem. E eles querem." Todos os que cá estão, acrescenta o diretor Rui, "disseram 'queremos uma segunda oportunidade'". E a escola renasceu para eles..Antes de aqui entrar, Jonny nem sonhava. Agora, sonha e sonha ser mecânico. "Não como o meu pai, que é mecânico, mas bate-chapas", esclarece. Contudo, faz a confissão com cautela: "Vou deixar correr o tempo para decidir." Para quem a escola falhou tanto, todo o cuidado lhe parece pouco, mesmo no que toca a sonhar.."O ensino não é para todos".Mesmo depois de a sala de convívio ficar deserta, a música que os alunos abriram no YouTube continuou, ecoando pelas escadas acima, como pano de fundo das letras e números que ali se aprendiam: num lado do corredor, a aula do Jonny, de Português; no outro, Matemática, onde estavam Diogo Ribeiro e João Henriques. Vieram os três juntos, da mesma escola e com experiências semelhantes do ensino regular.."Não conseguia estar o tempo todo sentado na sala", confessa João Henriques, de 16 anos. Enquanto frequentou o ensino regular, isto era um problema. "Desinteressava-me das aulas, não queria estar lá." Nunca o escondeu dos novos professores que conheceu na Escola de Segunda Oportunidade de Samora Correia, que arranjaram uma solução: "Quando me mostrava inquieto, deixavam-me sair durante uns minutos." "Agora, já consigo ficar o tempo todo na aula", congratula-se..Uma situação familiar para o amigo e colega de turma Diogo Ribeiro, de 15 anos. Ainda era ele apenas uma criança no ensino primário quando teve de partir para a Suíça, à boleia das carreiras dos pais. Voltou há três anos, sem arrependimentos - porque Diogo sempre quis regressar às raízes. Contudo, voltou como aluno de dois anos abaixo daquele para o qual tinha idade, devido às diferenças do sistema educativo entre os dois países..Admite que a diferença de idades dos colegas e a mudança de país, ao final de quase dez anos no estrangeiro, terão influenciado todas as dificuldades que se seguiram. "Embirrei com o meu diretor de turma, ele embirrou comigo e pronto." Por isso, Diogo começou a faltar às aulas até ser identificado como um dos alunos em risco de abandono escolar e ser um dos estreantes da Segunda Oportunidade que surgia em Samora Correia..Nem o João, nem o Diogo nem o Jonny se identificaram com o que era feito dentro da sala de aula. E, para o professor de Eduação Física e vice-reitor Paulo Eira, a conclusão é simples: "O ensino não é para todos e temos de o reformular.".São inúmeras as barreiras ao sucesso, diz. "Estou no ensino há muitos anos - comecei a dar aulas com 19 anos - e sei que os professores são confrontados com o 'têm de ter flexibilidade', mas depois, na realidade, têm 30 alunos numa sala de aula, têm conteúdos obrigatórios para transmitir ao longo do ano, que têm de ir a exame. E ficam com o dilema: ou dou isto a um ritmo a que todos consigam acompanhar e não dou a matéria toda; ou dou isto de forma a dar a matéria toda e sei que nem todos vão acompanhar. Não há hipótese", conta..Todas as medidas que têm sido apresentadas ao longo dos anos, acrescenta, "têm sido puramente economicistas, embora o governo as anuncie como medidas evolutivas". Mas, na verdade, "no terreno não sentem que estas medidas estejam a mudar alguma coisa"..E o diretor Rui Domingos não hesita em concordar. "Uma das medidas deste governo é acabar com as retenções até ao 9.º ano. E desde o 25 de Abril que temos passado por inúmeras reformas na educação. O que acontece é que ainda não se avaliou a anterior e já se está a experimentar outra diferente. E isto é tudo prejudicial, porque traz instabilidade. Enquanto continuarmos a pensar com a validade do círculo eleitoral, que são apenas quatro anos, e não a mais longo prazo, isto vai acontecer."