Quem vai assumir o papel da América?

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É cada vez mais claro que o presidente dos EUA, Donald Trump, representa uma mudança no que respeita à visão e ao comportamento global da América. Como resultado, os Estados Unidos deixarão de desempenhar o papel internacional de liderança que definiu a sua política externa durante três quartos de século, com presidentes democratas e republicanos de igual modo.

Já vimos muitos exemplos dessa mudança. O tradicional compromisso dos EUA com organizações globais foi substituído pela ideia da "América primeiro". Alianças e garantias de segurança, até agora consideradas como dados adquiridos, estão cada vez mais condicionadas a quanto os aliados gastam em defesa e a serem vistos como tirando vantagens injustas das relações comerciais com os EUA.

De uma forma mais abrangente, o comércio externo é visto com suspeita, supostamente é uma fonte de perda de emprego, em vez de um mecanismo de investimento, criação de emprego, crescimento e estabilidade. As políticas de imigração e de refugiados tornaram-se mais restritivas. A promoção da democracia e dos direitos humanos recebe cada vez menos ênfase. Vão mais dólares para a defesa, mas dedicam-se poucos recursos ao apoio à saúde ou ao desenvolvimento global.

Isto não deve ser confundido com isolacionismo. Mesmo a América de Trump continuará a desempenhar um papel significativo no mundo. Está a usar meios militares no Médio Oriente e no Afeganistão, a aumentar a pressão diplomática sobre a Coreia do Norte para controlar os seus programas nucleares e de mísseis e a renegociar o Tratado de Livre Comércio da América do Norte com o Canadá e o México. E as políticas de Estados, cidades e empresas traduzem-se num compromisso americano com as alterações climáticas, apesar da decisão de Trump de abandonar o Acordo de Paris.

No entanto, o mundo de relações estruturadas e instituições permanentes dominado pelos EUA está a ser deixado para trás e a ser substituído por outra realidade. Contudo, não se sabe ainda qual será a alternativa. O que sabemos é que não há nenhuma grande potência disposta, e capaz de intervir, a avançar e a assumir aquele que foi o papel dos EUA.

A China é um candidato frequentemente mencionado, mas a sua liderança está focada principalmente na consolidação da ordem doméstica e na manutenção de taxas de crescimento económico artificialmente elevadas para evitar a agitação popular. O interesse da China em instituições regionais e globais parece ser delineado maioritariamente para reforçar a sua economia e a sua influência geopolítica, e não para ajudar a estabelecer regras e a criar acordos cujos benefícios sejam abrangentes.

Da mesma forma, a Rússia é um país com uma economia excessivamente concentrada, liderado por um governo focado em manter o poder interno e restabelecer a influência russa no Médio Oriente e na Europa. A Índia está preocupada com o desafio do desenvolvimento económico e está de mãos atadas pela sua relação problemática com o Paquistão. O Japão é refreado pela diminuição da população, pelas restrições políticas e económicas internas e pelas suspeitas dos seus vizinhos.

A Europa, por sua vez, está distraída com questões relacionadas com a relação entre os Estados membros e a União Europeia. Como resultado, o continente como um todo é inferior à soma das suas partes e nenhuma delas é suficientemente grande para suceder à América no cenário mundial.

Mas a ausência de um único sucessor para os EUA não significa que o que nos espera seja o caos. Pelo menos em princípio, os países mais poderosos do mundo poderiam unir-se para assumir o papel da América. Na prática, porém, isso não acontecerá, pois esses países não têm capacidade, experiência e, acima de tudo, um consenso sobre o que precisa de ser feito e quem precisa de o fazer.

Um desenvolvimento mais provável é o aparecimento de uma combinação de ordem e desordem tanto a nível regional como global. A China promoverá vários mecanismos de comércio, infraestruturas e segurança na Ásia. Os 11 membros restantes da parceria Transpacífico podem avançar com o seu pacto comercial sem os EUA.

Menos claro é se a China está preparada para usar a sua influência para restringir a Coreia do Norte, como é que a Índia e o Paquistão evitarão conflitos e a resolução das muitas disputas territoriais da Ásia. É muito fácil imaginar um futuro asiático e do Pacífico caracterizado por maiores gastos em armas de todos os tipos e, portanto, mais suscetível a conflitos violentos.

O Médio Oriente está já a sofrer uma instabilidade sem precedentes, resultado de rivalidades e realidades locais, e de 15 anos durante os quais os EUA primeiro fizeram provavelmente de mais, e depois de menos para moldar o futuro da região. O perigo imediato não é apenas uma maior deterioração em Estados falidos, como o Iémen, a Síria e a Líbia, mas também os conflitos diretos entre a Arábia Saudita e o Irão.

A Europa pode ser uma exceção a tais tendências, uma vez que a eleição do presidente Emmanuel Macron em França deu origem a um governo comprometido com a reforma da UE. Mas a própria UE enfrenta um futuro incerto devido ao brexit e a crises em câmara lenta em Itália e na Grécia, para não mencionar o potencial de mais maquinações políticas russas ou pior.

A tudo isto pode adicionar-se o colapso na Venezuela e os horrores conhecidos de todos no Sudão do Sul e na República Democrática do Congo. E, em seguida, há o fosso crescente entre os desafios globais, como a forma de governar o ciberespaço e a vontade dos governos de trabalharem em conjunto para os abordar.

Há bastante ironia nesta mudança global de acontecimentos. Durante décadas, muitos países criticaram a política dos EUA, tanto pelo que era como pelo que não era. Estes mesmos países enfrentam agora a perspetiva de um mundo em que a liderança americana será provavelmente menos marcante. Está longe de ser evidente a preparação deles para esse mundo ou se a sua situação nele será melhor.

Presidente do Conselho para as Relações Exteriores dos EUA

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