Quem somos nós para julgar a necessidade ou não de homens e mulheres sairem dos seus países porque lá enfrentam a miséria total?"

Com o intuito de alertar para a problemática dos refugiados e da crise migratória, a encenadora francesa Marie-Eve Signeyrile criou um espetáculo de música e dança que esta sexta e sábado sobe ao palco da Gulbenkian.
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Baby Doll é espetáculo multidisciplinar: música e coreografia. Encenado pela francesa Marie-Eve Signeyrile sobe ao palco do grande Auditório da Gulbenkian esta sexta e sábado e trás consigo uma experiência que junta a música de Beethoven (que irá ser interpretada pela Orquestra Gulbenkian) com apontamentos do clarinestista e compositor Yom.

Em palco, a encenadora, que regressa a Lisboa depois de em 2017 ter trazido a produção O Monstro no Labirinto, quis com Baby Doll criar uma "fição documental" com base em histórias reais sobre a crise migratória. Em vésperas do espetáculo a encenadora falou com o DN sobre o seu espetáculo

Qual a razão da escolha de Beethoven para o seu espetáculo?
Tive um pedido da Orquestra de Câmara de Paris para trabalhar numa sinfonia de Beethoven. E com isso surgiu a oportunidade de trabalhar de uma forma muito aberta e tive liberdade total de escolher os meus parceiros artísticos. Assim, escolhi a 7ª sinfonia de Beethoven porque me lembra a viagem, o corpo em movimento, a fuga, a caça... e cada movimento podia contar uma dessas etapas. Optei então por trabalhar com bailarinas porque os corpos dessas mulheres (refugiadas) são atormentados pela fome, sede, espancamentos, violações, seca, água salgada... e os corpos das bailarinas permitem-me contar histórias sem palavras.

Mas não é só Beethoven, também é um diálogo com outro compositor: Yom. Escolhi criar um diálogo entre dois compositores e através deles o diálogo entre dois continentes. Um diálogo às vezes possível, às vezes difícil. Beethoven está lá para contar ao El Dorado, a terra prometida, mas também aos que se julgam superiores. E a música de Yom encarna o país que se deixa e a nostalgia das raízes e das origens.

Baby Doll é sobre a crise dos refugiados Mas qual a principal mensagem que quer passar com Baby Doll?
Quem somos nós para julgar a necessidade ou não de homens e mulheres sairem dos seus países porque lá enfrentam a miséria total? Sem pátria, sem família, sem dinheiro, sem nada? Não devemos ter medo do que é estranho, as nossas diferenças são as nossas riquezas. Devemos pensar o mundo juntos e não divididos.

A sua peça é baseada em histórias reais. Onde as encontrou?
Conheci dezenas de mulheres refugiadas e fui recolhendo os seus testemunhos coletei através de associações. Também li vários livros. Inventei então uma personagem fictícia composta por todos esses testemunhos. Quis prestar homenagem a todos eles que nunca conseguiram chegar. Mas é importante dizer que se trata de ficção documental. Como é que espera que o público se sinta depois de ver o espetáculo? Espero que mais humano, mais unido, menos frio e menos preocupado com "o estranho". É importante comungarmos juntos. A sala de espetáculos, ao contrário dos nossos ecrãs, permite-nos sentar juntos e confrontar ideias, mensagens, e realidades por vezes difíceis. Este show não divide, ele dá a conhecer uma realidade.

CitaçãocitacaoÉ muito útil revisitar as obras para contar o mundo de hoje, porque a música clássica tem algo de universal e intemporal.

O mundo da música clássica está atento a esta e outras temáticas, como a guerra, por exemplo?
Às vezes é um pouco fechado em si mesmo quando se trata de escolher o seu repertório. Mas as coisas estão a mudar e estamos cada vez mais conscientes do quanto a nossa herança musical já carrega em si todos os males, emoções, lições de humanidade e desumanidade do mundo. É muito útil revisitar as obras para contar o mundo de hoje, porque a música clássica tem algo de universal e intemporal. Quanto à guerra sei que há óperas que à sua maneira estão a acolher artistas e técnicos ucranianos.

Como tem sido a reação das apresentações de Baby Doll nos vários locais onde apresentou a peça?
O público fica muito emocionado e muitas vezes levanta-se no final do espetáculo em sinal de compaixão. E também sai mais informado também.

E depois de Baby Doll, o que já está a preparar?
Estou atualmente a trabalhar em diferentes criações de óperas e estou a escrever uma peça que é me é bastante cara: um libreto sobre a juventude iraniana para a Ópera de Berlim.

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