Quem são os lisboetas? Eis os seus amores, memórias, e angústias
Imagine que sobe a um palco rodeado por 99 pessoas e vos perguntam: Quem chorou nos últimos 15 dias? Quem já decidiu fazer um aborto? Quem já foi vitima de violência doméstica? Mataria para defender a sua família? Quem já teve cancro?
Cem pessoas reúnem-se a partir de hoje e até dia 10 no palco da Culturgest para responder a estas e a outras perguntas, para nos mostrar como é o seu dia-a-dia, para contar algumas memórias, para mostrar que cidade é essa onde vivem. Há quem tenha um ano e meio e há quem tenha 88.
100% Lisboa, que se estreia hoje, é uma encenação dos Rimini Protokoll, já conhecidos na cidade, e traz à capital portuguesa um formato que começou em 2008 em Berlim. Desde então, já passou por mais de 35 cidades, de São Paulo ao Cairo, Paris, ou Porto, recentemente.
"Cada um de nós representa a 5 045 lisboetas", ouvimo-los dizer em cena. Não é por acaso que eles são cem, nem é por acaso que são aqueles cem. O projeto, que conta com a colaboração da Fundação Francisco Manuel dos Santos, parte de um estudo da PORDATA sobre Lisboa. Este diz-nos que a cidade tem 505 526 residentes e, por exemplo, que 54% destas são mulheres, e que 25% da população tem mais de 65 anos.
O número um deste grupo é Maria João Rebelo. Está reformada do Instituto Nacional de Estatística. Convidou, para integrar o projeto, o seu filho Gonçalo, que por sua vez convidou o colega de trabalho Rodrigo, que convidou o seu filho Isaac, de quatro anos, e assim sucessivamente. O grupo foi formado por convite até ser fiel à estatística. Helgard Haug, que com Stefan Kaegi e Daniel Wetzel forma os Rimini Protokoll, explica que, por exemplo, a certa altura, não é possível aceitar mais pessoas casadas, porque estatisticamente não existem a partir daquele número.
Além do esquema de passa-a-palavra, há depois convites feitos diretamente a algumas pessoas, para que o grupo espelhe os dados recolhidos. Helgard Hung conta que um dos grupos mais difíceis de encontrar foi aquele composto por homens solteiros, de nacionalidade portuguesa, que vivam no centro de Lisboa.
Luís Alberto Delgado é o número 39 deste grupo. Tem 66 anos. Veio de Bolama, Guiné e vive no centro social do Bairro Padre Cruz. Foi empregado comercial. Veio para Portugal em 2012, quando precisou de cuidados médicos que o seu país não lhe podia prestar. Tem insuficiência cardíaca crónica.
Em 100% Lisboa vai falar de um dos episódios mais marcantes na sua vida. "Aos cinco anos de idade a minha mãe queimou-me os pés com um ferro de engomar, daqueles antigos, que se punham nas brasas. Mandou-me para cima da cama, pegou-me nos tornozelos, e queimou-me os pés. Ainda me dói de vez em quando", contou ao DN.
Só sairia de Lisboa para voltar para o seu país. Hoje em dia, e devido à sua saúde, pouco sai do centro, cansa-se muito. Ali, em cima do palco, é como se Luís Alberto estivesse a passear pela cidade.
"É um espelho, e a plateia pensa: Onde estaria eu? Quem me está a representar?", diz Helgard Hung. Perguntamos-lhe que Lisboa encontrou quando olhou para estas cem pessoas no palco. "O que vemos é uma sociedade bastante envelhecida, muita gente idosa. São maravilhosos, e com muito sentido de humor, mas não os vemos tanto na cidade. A minha impressão quando estou na cidade é de que é fresca e jovem. De repente o movimento que vemos aqui é diferente."
Encontrou uma sociedade feliz? "Será feliz? São muito amigáveis, felizes, não sei. Vejo-a como uma sociedade sentimental, com sentimentos profundos. Quando fazemos isto noutras cidades é mais difícil as pessoas mostrarem-se, abrirem o coração, ou no que diz respeito às questões políticas. Quando fizemos na Califórnia fiquei muito surpreendida porque me disseram: Não, nós não falamos de política fora de casa. Isto fica na mesa da cozinha. Não queremos falar disto no palco. E nós dizíamos: 'Mas é para isso que está lá o palco. Isto não é entretenimento, embora tenha alguns elementos'", reflete ainda.
A criadora e membro dos Rimini Protokoll conta ainda como que reparou na solidão entre muitos dos que tinha à frente - "não apenas nos mais velhos, há muitos jovens que passam as noites sozinhos" -, viu como ainda perduram os efeitos da crise, e como a questão colonial continua tão presente. Além disso, nota, reparou que existem "muitos divorciados" e viu a "importância da religião na vida das pessoas, maioritariamente nos mais velhos".
Gonçalo Ferreira, de 27 anos, é o número 96. É engenheiro civil, mudou-se do Porto para Lisboa há quatro anos, e foi um dos procurados pela organização para integrar o espetáculo.
Conta ao DN que uma das questões mais difíceis de responder foi a do aborto. "Realmente não sei o que responder. Até podemos dar uma resposta emocional, que normalmente é a resposta heroica, mas nunca temos a certeza se passássemos por aquilo... De certeza que as pessoas que o fizeram são iguais a nós, e não o fizeram por desporto."
Noutras perguntas tidas como fraturantes, "É a favor da pena de morte?" ou "Mataria alguém?", por exemplo, diz que "é sempre duro ver pessoas a mexerem-se para certos sítios [como resposta] no palco nessas situações."
Uma das cenas que mais o pôs a pensar foi aquela em que os participantes demonstram o seu dia-a-dia, ao longo das várias horas de um dia típico nas suas vidas. "Acho que tem sido das partes mais introspetivas. Olhar para aquilo e pensar: se calhar falta aqui qualquer coisa."
Quando está em cima do palco, olha em volta e vê Lisboa, parte dela desconhecida para si. "Há aqui um senhor que foi treinador de cães na altura da guerra. A vida deste senhor deve ser completamente diferente da minha..."
100% Lisboa
Entre hoje e 10 de fevereiro na Culturgest
Bilhetes a 14 euros, com descontos