"Quem estuda o terrorismo sabe que o sítio mais pacífico do mundo pode tornar-se de repente num inferno"

Boaz Ganor é fundador e diretor-executivo do Instituto Internacional de Contraterrorismo, em Israel. Esteve de férias em Portugal e numa breve conversa com o DN partilhou algumas ideias sobre as principais preocupações atuais em matéria de terrorismo.
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Boaz Ganor é um dos mais conceituados investigadores do mundo em contraterrorismo, ouvido pelos governos e em universidades de vários países do mundo. Há mais de 30 anos que estuda este fenómeno e é comentador regular em estações televisivas, como a CNN.

Qual é a sensação, para um perito em contraterrorismo, de passear em Portugal, o quarto país mais seguro do mundo e o terceiro da Europa, de acordo com a mais recente avaliação divulgada no relatório Global Terrorism Index (GTI)?

Sinto-me tão seguro em Israel como me sinto em Lisboa. A vida em Telavive é tão animada como em Lisboa. Não fico por norma muito impressionado com as classificações de segurança, porque quem estuda o terrorismo sabe que o sítio mais pacífico do mundo pode a qualquer momento tornar-se num inferno.

Basta recordar o 11 de setembro de Nova Iorque. Quem pensaria no dia 10 que poderia acontecer uma atrocidade daquelas? E ainda por cima num dos locais mais seguros do mundo! Não nos devemos confundir com algumas sensações de segurança.

Não quero dizer que sejam falsas, são verdadeiras, mas podem sê-lo apenas nesse momento. Ninguém sabe o que será o dia seguinte. É por isso que penso que cada Estado, principalmente as entidades responsáveis pela Segurança, tem de se preparar para o futuro como se o pior pudesse acontecer. Isto independentemente dos rankings, avaliações, relatórios, serem muito bons.

Quem pensa em segurança tem de ter sempre em mente que pode estar a ser preparado um ataque do qual nada sabem.

O 11 de setembro foi há 20 anos...

Sim. Inacreditável. Lembra-se do que estava a fazer nesse dia?

Perfeitamente.

Todas as pessoas no mundo se lembram exatamente o que fizeram nesse dia. Eu estava nos EUA, Palo Alto, a dar uma conferência sobre a experiência israelita no combate ao terrorismo suicida. Guardei o convite no meu gabinete, com a data de 11 de setembro de 2001.

O título era "Travar o terrorismo suicida. O desafio israelita". Nesse dia o título ficou totalmente errado. A partir daquele dia, travar o terrorismo suicida não era só um desafio israelita, mas de todo o mundo.

Nestas duas décadas, quais foram os maiores erros do contraterrorismo?

Questão interessante. Provavelmente vai ficar surpreendida com a minha resposta. Diria que o maior erro é que a comunidade internacional ainda não chegou a um acordo em relação à definição de terrorismo.

Eu entendo-o de uma forma, você de outra, a ONU de outra e no Irão de outra totalmente diferente. Nestes 20 anos esperava que a comunidade internacional tivesse dado esse passo.

Com uma definição de terrorismo estaríamos todos unidos no seu combate. Porque independentemente da nossa religião, cultura, interesses políticos, crenças, o terrorismo é uma coisa que todos temos de ser contra. E a definição que eu uso é muito simples: terrorismo é o uso deliberado da violência contra alvos civis por atores não estatais com o objetivo de alcançar fins políticos.

Não é muito diferente da definição da União Europeia ou da ONU....

É diferente em alguns aspetos. Por exemplo a definição do departamento de estado norte-americano diz que terrorismo é o uso deliberado da violência contra não-combatentes. Eu falo de civis.

Do ponto de vista dos EUA e de muitos países, incluindo Israel, um ataque contra alvos militares sob determinadas circunstâncias, pode ser visto como terrorismo. Definição com que não concordo.

A outra diferença é que eu saliento os atores não estatais e algumas pessoas perguntam se um Estado não pode atacar civis. Claro que pode.

Às vezes causam muito mais mal do que os atores não estatais. Mas, na minha opinião, quando um Estado ataca deliberadamente civis isso é um crime de guerra ou um crime contra a humanidade. Terrorismo é um crime de guerra de um ator não estatal.

É o único erro nestes 20 anos?

Não. Este é a base. Porque estando este corrigido podíamos ter construído alguma coisa mais sólida no contraterrorismo. Olhando para a Europa, por exemplo, acredito que um dos erros cometidos é o facto de não ter sido criada uma agência conjunta de contraterrorismo, como um FBI (Federal Bureau of Intelligence)...

Temos a Europol...

A Europol está a fazer um ótimo trabalho, mas é uma espécie de departamento de polícia. As polícias também lidam com o terrorismo claro, mas pensam em ofensas criminais. E eu penso que é preciso haver uma agência federal para o contraterrorismo.

O espaço Schengen permite a livre circulação praticamente sem nenhum controlo no continente Europeu e isso é um paraíso para os terroristas.

As fronteiras não têm qualquer significado quando falamos de terrorismo. Por isso penso que se deve passar da fase de cooperação intereuropeia para a ação conjunta. Não apenas cooperar mutuamente, mas agir operacionalmente em conjunto. Construir instituições e trabalhar em conjunto para prevenir o terrorismo.

Qual está a ser o impacto da pandemia na atividade terrorista?

É evidente que há uma diminuição, mais notória ainda nos países ocidentais. Por várias razões: a primeira, os terroristas são, infelizmente, também seres humanos e precisam de proteger a própria saúde. Mas é mais do que isso.

Hoje em dia é mais difícil a circulação entre países por causa do controlo do covid-19 e, ainda, porque as aglomerações de pessoas, os alvos mais procurados pelos terroristas, estão também muito limitadas.

Por isso digo que a diminuição dos ataques nos países ocidentais não pode ser apenas interpretada como o resultado de melhor segurança. É um conjunto de circunstâncias que mudará se e quando o coronavírus desaparecer e a vida voltar ao normal.

O último relatório da Europol resgistou um aumento de radicalizados online durante este período...

É uma bomba relógio isso.

O que prevê que venha a acontecer quando deixar de haver restrições devido à pandemia?

Dividimos o terrorismo em dois tipos de ataques: os ataques dos lobos solitários, que são individuais, de pessoas que se auto radicalizaram, possivelmente através da internet, e um dia decidem fazer um ataque.

O segundo tipo é o terrorismo organizado, normalmente conduzidos por uma célula terrorista que pertence a uma determina organização, como o ISIS, a Al-Qaeda, ou o Hezzbolah, onde são treinados e enviados para uma missão.

Quando falamos sobre o que pode acontecer, precisamos de distinguir estes dois tipos.

Em relação aos lobos solitários tendo a acreditar que, baseado na conclusão que referiu da Europol, quando a água está em grande ebulição acaba por derramar.

Ou seja, algumas dessas pessoas, que têm estado fechadas em casa, muito tempo agarradas aos computadores, com mais tempo para se ligarem a radicais por todo o mundo, vão entrar em erupção em meses ou anos. Vejo nestes casos uma situação pior para o futuro.

Em relação ao terrorismo organizado, a pandemia apanhou-o numa altura muito peculiar. A Al-Qaeda está muito fraca, praticamente não-existente, embora não deva ser ainda ignorada. O ISIS está a transformar-se daquilo a que chamo uma organização híbrida para uma organização terrorista clássica.

O que isso quer dizer?

Uma organização terrorista híbrida é uma grande organização que controla território e população, como o Hammas, o Hezzbolah. O ISIS controlou um vasto território na Síria e no Iraque e, apesar de conduzir ataques terroristas, tinha outras coisas em mente, tal como abastecimento de comida, serviços para as populações, entre outros.

O ISIS perdeu esta característica híbrida, mais ou menos um, dois anos antes do corona irromper. Os líderes do ISIS depararam-se com a necessidade de repensar sobre qual poderia ser a natureza da sua atividade.

Alguns ainda estão à procura de outros territórios para para reconstruir o estado islâmico, outros estão focados em planear atentados terroristas clássicos, com células terroristas que se infiltrarão na Europa, nos EUA e noutros países, possivelmente com base em terroristas de origem interna (doméstico) que foram recrutados para a organização.

Isto é algo que nos pode rebentar na cara e é muito difícil de prognosticar quando e como o vão conseguir. Mas há também outro fenómeno a ter em conta, que é o terrorismo da extrema-direita...

Sim, mas antes disso, quero perguntar-lhe sobre os combatentes estrangeiros do ISIS. Antes da pandemia o regresso destes terroristas, designadamente à Europa, era considerada uma das maiores ameaças à segurança da UE. Não se fala muito disso agora...

Tal como já referi, viajar hoje em dia é muito difícil. Mas quando falamos desses regressados, temos de nos lembrar de outro problema que atinje a UE neste momento em que falamos. Houve muitos que foram presos, condenados e estão a cumprir as suas penas de prisão em cadeias da UE.

Alguém pensa que estão a ser reabilitados na prisão? Quase de certeza que não. Provavelmente estão a tornar-se ainda mais radicais. Mas quando cumprirem a pena serão libertados, como é normal numa sociedade democrática.

O que se faz com essas pessoas? Como se monitorizam? Isto é algo que está a preocupar as autoridades de segurança na Europa e noutros sítios.

A propósito dos fracassos do contraterrorismo sobre os quais me perguntou no início, este é um deles também. Não se encontrou ainda um modelo de reabilitação que mudasse as mentes e os corações dos terroristas, que os tornasse mais moderados durante este tempo de prisão.

Segundo as autoridades portuguesas existem 16 mulheres e 27 menores com ligações a jihadistas portugueses, que se encontram em campos de detenção na Síria. Devem ser repatriados? Em que condições?

As viúvas e as crianças são um problema real. Chamamos-lhe o dilema democrático no contraterrorismo. Como equilibrar a eficiência do contraterrorismo tendo em conta os valores democráticos da sociedade?

Primeiro é preciso distinguir as viúvas das crianças. Quanto às viúvas, avaliaria cada uma pessoalmente. Algumas delas estarão muito radicalizadas, mesmo antes de terem casado e de terem viajado para a Síria ou Iraque. Podem ser muito perigosas e eu preveniria o seu regresso.

Outras foram forçadas a viajar com os maridos e foram muito mal tratadas, soferam muito. Em relação a estas deixaria que voltassem, sob alguma observação, e deixaria que se integrassem na sociedade outra vez.

Quanto às crianças, depende da idade. Um rapaz de 16 anos é uma criança ou é um guerreiro? Tem que ser feita uma avaliação casuística.

Em relação à extrema-direita, as autoridades europeias, como a Europol, ou analistas do GTI, identificam este terrorismo como uma preocupação crescente (em cinco anos os seus ataques cresceram cerca de 700%). Está de acordo? Esta ameaça vai substituir a do terrorismo islâmico?

O terrorismo de extrema-direita não é um fenómeno novo. É até bastante antigo, mesmo mais que o terrorismo jihadista islâmico. Mas sim, assistimos a um crescimento no número de seguidores e no número de ataques.

Há algumas observações a salientar. A primeira é um certo tipo de influência que o terrorismo jihadista exerce na extrema-direita e vice-versa.

Por exemplo o Branton Tarrant (atentado nas mesquitas de Christchurch, na Nova Zelândia), explicou no seu manifesto as suas razões e referiu o radicalismo islâmico, a imigração islâmica para a Europa, como motivo da sua decisão. Associou as suas atividades terroristas à radicalização islâmica.

O contrário acontece também. Em alguns casos de ataques jihadistas em África ou outros países, os seus autores justificam-nos como uma vingança contra ataques aos locais sagrados muçulmanos. Há uma espécie de reciprocidade entre os dois fenómenos.

Outra observação interessante é que grande parte do terrorismo de extrema-direita está associado ao fenómeno dos lobos solitários e redes independentes locais.

Quer dizer que dificilmente se encontra um tipo de organização como no terrorismo jihadista islâmico. A questão é que cada vez mais pessoas se aproximam destas ideias através da internet e criam uma espécie de organização virtual.

No futuro podem vir a ser mais organizados, mas por enquanto estão um pouco desorganizados o que, por um lado, até os torna mais perigosos, porque é muito difícil identificá-los e juntar os pontos detetar a preparação dos ataques antes de acontecerem.

Que impacto vai ter na segurança do mundo a saída dos EUA do Afeganistão?

Compreendo a decisão dos EUA. Mas estou muito preocupado com o futuro. Afeganistão é um barril de pólvora. Um local onde jihadistas, islamitas, radicais, globalistas, voltam vezes sem conta. Vimo-lo na década de 70, na de 80, 2000.

Quando esta região se torna desgovernada tona-se muito perigoso. A questão é se se vai tornar ingovernável como era antes e vamos todo sofrer, ou, pelo menos, os afegãos encontrarão alguma forma de estabilizar a situação com uma ajuda positiva dos EUA ou outros países, e alguma coisa de bom vai acontecer.

Como é que viu o escândalo do caso Pegasus? No contraterrorismo, por exemplo, esta situação afetou a confiança dos países aliados em relação a Israel?

Essa questão remete-nos, uma vez mais, para o "dilema democrático", para a eficiência em contraterrorismo salvaguardando os valores das sociedades democráticas.

Quando soube deste caso pensei que talvez fosse necessário juntar peritos independentes, académicos, não pessoas do governo, e criar um órgão que pudesse ser consultado sobre estas matérias, para ajudar a pensar o que está certo ou errado. A Google e o Facebook já o fizeram.

Companhias como a NSO também o devia fazer. Estão a trabalhar numa linha muito perigosa e frágil e precisam de ouvir especialistas que não têm argumentações empresariais ou motivações políticas.

Devia haver uma combinação entre peritos em contraterrorismo e peritos em direitos humanos, a trabalhar juntos. Porque proteger as vidas dos cidadãos em contraterrorismo é proteger o maior dos direitos de todos os seres humanos - o direito à vida.

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