Os dois homens que conversam à porta da oficina em frente ao antigo restaurante Os Pegões, em Carregueiros, Tomar, não escondem a surpresa. Foi ali perto, no barracão anexo ao estabelecimento comercial da família de João Paulino, suspeito de ter sido o autor do roubo de armas em Tancos, em junho de 2017, que o ex-fuzileiro terá escondido o arsenal furtado. Foi daquela grande propriedade que também terão sido levadas as munições, granadas e explosivos, para um terreno baldio na Chamusca, a poucos quilómetros dos paióis de onde foram roubados, naquela que foi descrita como "a maior quebra de segurança a nível militar do século"..O dono da oficina nunca se apercebeu de movimentos suspeitos junto à propriedade da família de Paulino - considerada uma família abastada na região -, e não se lembra de se ter cruzado com ele ultimamente. Via-o muito quando Paulino era um rapazinho e frequentava o restaurante dos avós maternos. "Também já não o reconheceria, passou muito tempo", garante o mecânico, que não quis dizer o nome..A "história mal contada" do roubo de armas, como é descrita pela vizinhança, deixa todos de sobreaviso. Se é certo que quem conhece João Paulino e a família não percebe como é que "o rapaz se foi meter nisto", também há muitos que desconheciam os passos do ex-militar, de 32 anos, detido desde 25 de setembro de 2018 nas instalações anexas ao edifício da Polícia Judiciária de Lisboa. Sabem que morava em Ansião, geria um bar e que tinha sido pai há pouco tempo. Os mais próximos não arriscam explicações, mas apontam aquilo que está no pensamento de muitos: "Ele não fez aquilo sozinho, nem sei se partiu da cabeça dele", afirmam, antes de imporem um silêncio de conjeturas mentais que não arriscam partilhar com jornalistas..O mesmo acontece em Ansião, a 35 quilómetros de Carregueiros e o lugar onde o ex-fuzileiro foi detido, no interior de uma das habitações do Condomínio Rosa, a casa onde vivia com a mulher e o filho de 2 anos..À porta está o carro que João Paulino tentou vender em junho, através das redes sociais, as mesmas que denunciam o gosto do ex-fuzileiro por armas. Em agosto, já depois do roubo em Tancos, conseguiu trespassar o negócio que geria desde 2012. Era o bar JB, situado na Rua Heróis do Ultramar, a 200 metros da casa onde acabaria por ser detido. Era ali que estava "todos os dias, do meio-dia às duas ou quatro da manhã. Era um bar sempre cheio de clientes e que devia dar dinheiro", contou ao DN a antiga senhoria de Paulino. "Soube do que aconteceu pelas notícias, nunca me passou pela cabeça que ele estivesse envolvido nisso", disse.."Um rapaz tão educado, que andava sempre sozinho".O antigo inquilino foi sempre "certinho" no pagamento da renda do espaço que chegou a gerir com um dos melhores amigos, emigrado na Suíça há dois anos. Mas nem nessa altura o ex-fuzileiro pensou desfazer-se do negócio..O antigo bar já tem outra gestão, chama-se agora Street Bar. Foi Paulino quem "tratou de tudo": "Arranjou o novo inquilino e nós aceitámos o negócio", conta Cecília, a senhoria que explora o pequeno café ao lado, e que prefere não avançar o apelido. É que Ansião é um lugar pequeno - a vila tem pouco mais de 2700 habitantes - todos se conhecem, ainda que ninguém se lembre de alguma vez João Paulino ter tido problemas com a justiça..As buscas da Polícia Judiciária incidiram também nas residências dos pais, avós e sogra do ex-fuzileiro e acabaram por expor todos aqueles que tinham uma ligação direta com o suspeito. O que foi encontrado revelou o tipo de vida "do rapaz tão educado, que andava sempre sozinho", como disseram ao DN alguns dos vizinhos de Paulino. No barracão junto ao restaurante situado à entrada de Carregueiros - e que está a venda por meio milhão de euros - foram encontradas armas, carregadores e munições, além de 16 quilos de haxixe e cerca de 60 gramas de cocaína, uma balança, notas estrangeiras - como francos suíços - telemóveis e várias multas por falta de pagamento de portagens referentes a várias matrículas. Foi ainda encontrado um passa-montanhas com o patrocínio "Licor Beirão", vários cartões SIM e dinheiro..Fonte próxima da defesa de João Paulino confirma a quantidade de droga apreendida e avança que o ex-fuzileiro nunca antes tinha sido acusado de qualquer crime. O mesmo apurou o DN: João Paulino não tem cadastro, os únicos problemas com as autoridades resumem-se a algumas multas por pagar. A ser verdade que tudo o que foi encontrado lhe pertencia, tinha uma vida secreta e os contactos que mantinha com o mundo do crime atiraram-no para o centro de um dos maiores escândalos dos últimos anos e que envolvem altas patentes militares. João Paulino terá dado um passo maior do que a perna?.Os investigadores seguiram a linha da vida de Paulino: além de Carregueiros, os investigadores estiveram na casa de Ansião, onde morava o suspeito, mas também em Chão de Couce - a seis quilómetros da vila e a terra do pai e da avó paterna do ex-fuzileiro (os pais estão separados, a mãe vive em Albufeira onde gere um estabelecimento turístico).A polícia também esteve na casa da sogra de Paulino, a 50 metros do bar que este explorava, e fez ainda buscas no Algarve e no Porto.."Fechaduras" falou do assalto a Tancos em março de 2017.A cidade do norte é crucial na investigação: se na vila se diz que quem ajudou o ex-fuzileiro a furtar o material "foi gente do Porto", a Judiciária sabe que, já em março de 2017, um informador conhecido pelo nome "Fechaduras", natural do Porto, tinha avançado que se estava a planear um assalto a uns paióis do Exército na zona de Leiria. Na escuta, o informador, conhecido por ser um "perito" em abertura de cadeados e portas, dizia que tinha sido sondado para abrir os paióis em Tancos, mas que decidira não o fazer. Não é certo que não tenha estado envolvido no assalto..A investigação prossegue, e se a voz do povo repete que "a história está mal contada", falta saber se João Paulino irá falar, uma vez que até agora optou por não prestar declarações. O DN sabe que o ex-fuzileiro poderá estar a equacionar um acordo e que, por isso, o seu atual silêncio, bem como o de familiares e da própria defesa, poderá anteceder uma fase em que novos dados sejam revelados..A Operação Húbris já levou à detenção do ex-diretor da Polícia Judiciária Militar, Luís Vieira, e de outros cinco militares da Polícia Judiciária Militar e da GNR. Estão acusados dos crimes de "associação criminosa, denegação de justiça, prevaricação, falsificação de documentos, tráfico de influências, favorecimento pessoal praticado por funcionário, abuso de poder, recetação, detenção de arma proibida e tráfico de armas"..Amigo GNR de Loulé foi o elo com Polícia Judiciária Militar.João Ricardo Paulino, 32 anos, foi fuzileiro, fez o curso nas forças especiais da Marinha em 2005 e ingressou como primeiro-grumete nas Forças Armadas em 2006. Nasceu em Albufeira, onde cresceu e estudou - é aqui que vivem a mãe e avó materna, a quem pertence a propriedade onde terão sido escondidas as armas roubadas em Tancos. Paulino terá furtado o material para vender, mas assustou-se com a repercussão do furto e contactou um amigo de infância, Bruno Ataíde, um ex-paraquedista que pertencia ao Núcleo de Investigação Criminal da GNR de Loulé..Paulino terá pedido ajuda a Ataíde: disse-lhe que sabia onde estavam as armas e que estava disposto a entregá-las caso lhe garantissem que não iria responder criminalmente pelo roubo. Ataíde é um dos militares que ficaram detidos em prisão domiciliária. Terá sido ele quem contactou a Polícia Judiciária Militar (PMJ) e que iniciou as negociações para a devolução das armas - cerca de 1500 munições de calibre 9 milímetros (não foram encontradas algumas destas munições), centenas de granadas e dezenas de unidades de explosivo plástico, entre outro equipamento..Cronologia.Março 2017 Um informador da Polícia Judiciária, conhecido pela alcunha "Fechaduras", é apanhado numa escuta a revelar que tinha sido sondado para abrir uns paióis do Exército situados na zona de Leiria.28 de junho de 2017 O furto do material de guerra é detetado pelas 16:30, durante uma ronda móvel. A patrulha verificou que dois paióis tinham as fechaduras arrombadas. Interrogaram os militares que estavam responsáveis pela segurança e pelas rondas.29 de junho de 2017 Exército revela o desaparecimento de material de guerra dos paióis nacionais de Tancos.Noite de 30 para 31 de agosto de 2017 João Paulino ter-se-á encontrado com Bruno Ataíde, militar da GNR de Loulé, em Albufeira. Foi nesta noite que terão começado as negociações para a entrega das armas. O sargento Lima Santos foi informado da conversa e contactou o seu conterrâneo e amigo pessoal da PJM, Mário Lage de Carvalho.Setembro 2017 Dia 1, terá existido o encontro entre o major Vasco Brazão, João Paulino, Bruno Ataíde, Pinto da Costa, José Gonçalves e Mário Lage de Carvalho. Plano foi traçado em Ferreiras, Pombal. Dia 28 houve novo encontro, segundo a investigação. João Paulino desligou o telemóvel.Outubro 2017 A 17, Lima Santos, Bruno Ataíde e Paulino encontram-se em Tomar e vão ao restaurante encerrado da avó materna de Paulino, em Carregueiros, buscar as armas. Utilizaram uma carrinha da PJM. A 18 de outubro é encontrado o material de guerra, a cerca de 25 quilómetros de Tancos, num terreno baldio perto da Chamusca. O chefe de Estado-Maior do Exército, general Rovisco Duarte, confirma que é o material desaparecido. Faltam munições de 9 mm, mas aparece uma caixa de petardos que não estava na lista.25 de setembro de 2018 É detido, pela PJ, o diretor da PJM, coronel Luís Vieira. No mesmo dia é detido João Paulino, o único civil. Foram ainda detidas mais seis pessoas: três da PJM e três da GNR. Luís Vieira e Paulino ficam em prisão preventiva, os restantes em prisão domiciliária.1 outubro 2018 É detido o ex-porta-voz da PJM, major Vasco Brazão, à chegada ao aeroporto de Lisboa.12 de outubro 2018 Ministro da Defesa, José Azeredo Lopes, demite-se..17 de outubro de 2018 Chefe do Estado-Maior do Exército demite-se. Invoca "circunstâncias políticas" que não revela, mas que estão relacionadas com o furto e recuperação do material de guerra em Tancos.