É um vale. Ou como as bossas de um camelo. As imagens para retratar a estrutura etária dos médicos portugueses são várias, mas ilustram uma única realidade: a classe está envelhecida e tem poucos especialistas na meia-idade. As demissões nos últimos tempos em São José e na Maternidade Alfredo da Costa deixaram a descoberto um problema que está longe de ser isolado, o da falta de renovação de uma profissão em que muitos recém-especialistas desistem de esperar por um lugar nos hospitais e onde quase metade dos médicos tem mais de 55 anos e pode deixar de fazer urgências..Ainda na última semana, o bastonário dos médicos alertou que serviços dos hospitais públicos entrariam em colapso se os médicos acima dos 50 anos deixassem de fazer noites e urgências. E os dados frios, publicados no último relatório social do Ministério da Saúde, dão-nos a real dimensão do quão caótico pode ser esse cenário. Para se ter a noção do inverno demográfico na classe, a mais envelhecida de todas as que compõem o setor da saúde, a idade modal na pirâmide dos médicos, sem internos, é a dos 62 anos (ver infografias); 55% (10 mil) dos 18 mil especialistas portugueses (incluindo 5500 médicos de família) têm mais de 50 anos, idade a partir da qual podem deixar de fazer trabalho noturno. E uma percentagem pouco menor (45%) tem já mais de 55 anos. Podem portanto deixar de fazer urgências..Mas o que os avisos recentes no Centro Hospitalar de Lisboa Central vêm mostrar é que nem é preciso chegar a essa situação limite para que os serviços não apresentem já, nas palavras dos chefes das equipas de São José, "níveis de segurança aceitáveis". "E é um problema sistémico, não é de um hospital, que resulta da incapacidade em contratar, da falta de autonomia das administrações e da necessidade de mudar as leis, que passa também pelo Parlamento", resume o presidente da secção Sul da Ordem dos Médicos..E "o problema", traduz Alexandre Valentim Lourenço, passa não só por menor capacidade de resposta nas urgências, mas também pela queda na qualidade da formação de jovens médicos, a outro extremo muito representado no gráfico das idades. "Os hospitais públicos ficaram com os médicos mais velhos e com internos. Os de 40/50 anos estão no privado ou em PPP. E estes internos depois não ficam nos serviços, porque as exigências das Finanças estão a adiar concursos e contratos. Vão para privados, para bolsas de recrutamento nos casos mais urgentes, ou fazer especializações no estrangeiro". .Mudanças na carreira.A lição de História conta-se rapidamente. A seguir ao 25 de Abril, as faculdades de Medicina abriram as portas a muitos candidatos, porque o país tinha falta de médicos. Até finais da década de 1980 formaram-se milhares de médicos. Mas nesse período, com Leonor Beleza como ministra da Saúde, reduziram-se numerus clausus, ao mesmo tempo que o governo prometia especialização para todos os formados na área. "Tínhamos apenas 300 médicos formados por ano", conta Alexandre Valentim Lourenço, que se dedicou à análise deste período. "Esses médicos podiam escolher onde queriam fazer a especialização e escolhiam os grandes centros de referência, portanto passaram a ser dos melhores especialistas das suas áreas a nível europeu. Isto numa altura em que surgiram os grandes hospitais privados e as PPP na saúde, para onde foram depois trabalhar. Ficaram poucos especialistas de 40/50 anos no setor público"..Agora, mesmo se os quadros da Saúde fossem abertos, seriam precisos pelo menos quatro anos para os preencher, admite o representante da Ordem, "e com especialistas que ainda não têm a qualidade dos que saíram". Além disso, "a questão é que não temos formadores com 40/50 anos, temos mais velhos, que já são chefes de serviço. Portanto, temos internos muito novos - mais de oito mil, razão pela qual há muitos serviços praticamente entregues a internos - com especialistas muito seniores, que já têm muitas outras coisas a tratar e que podem já não ter a noção mais correta da formação"..Ida para o privado ou para o estrangeiro, são as soluções apontadas pelo presidente do Conselho de Pós Graduação da Ordem, Carlos Cortes. Tanto para os mais jovens como para aqueles que rotula de "desanimados" com o SNS. "E os que emigram já não voltam. Temos um gabinete para ajudar no regresso e o que notamos é que esse departamento não tem trabalho", adianta o também presidente da secção Centro da Ordem dos Médicos. "E vão para fora, não só para ganharem mais, mas também porque se sentem mais considerados. O SNS não consegue segurar os seus médicos. Hoje já não é fator de prestígio trabalhar no setor público, mesmo para um chefe de serviço"..E tarefeiros? As empresas de prestações de serviços podem ser alimentadas com os especialistas que desistem de entrar no SNS? Responde Alexandre Valentim Lourenço: as empresas estão a contratar médicos muito indiferenciados, regra geral estrangeiros. Para casos pontuais, recorrem a especialistas já a trabalhar nos hospitais, como acontece na anestesiologia, uma das áreas mais carenciadas do SNS..Além de concursos mais rápidos, o presidente da secção Sul da Ordem defende mudanças nas carreiras - "para que passem a ser progressivas e a compensar a competência" - para estimular os profissionais no SNS. "Não faz sentido um especialista em pediatria ganhar o mesmo que um outro que tem depois uma subespecialidade e ainda formação em gestão. Essas competências devem ser compensadas". Reivindicações acompanhadas por Rui Nogueira, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, que também critica os sucessivos atrasos na abertura dos concursos.