Quantas patas em simultâneo ergue um cavalo a galope? O enigma a que a fotografia respondeu

Fotógrafo da Guerra Civil Americana, o norte-americano Andrew Joseph Russell captou uma imagem tornada ícone da brutalidade do conflito. Na manhã de 4 de maio de 1863, Russell visitava um dos palcos da segunda batalha de Fredericksburg, no estado da Virgínia, quando a sua objetiva se deteve numa vala onde jaziam os corpos de soldados Confederados. Um muro de pedra delimitava a fronteira entre a morte de centenas de soldados e o ermo de onde sopraram as balas fatais poucas horas antes. Mais de século e meio volvido, a foto de Andrew Joseph Russell vive como memória visual na internet sob a pesquisa "Confederate dead behind the stone wall of Marye"s Heights"..Distante daquele maio de 1863 e da geografia da Virgínia, Andrew Russell, fixou para a posteridade um instantâneo inaugural da ligação ferroviária entre o Oeste e Leste dos Estados Unidos. A 10 de maio de 1869, uma multidão de trabalhadores postou-se para a foto em Promontory, no estado do Utah, local de união das duas linhas ferroviárias que avançavam há anos a partir de pontos opostos, uma construída pela Union Pacific, em direção a Oeste; outra instalada pela Central Pacific, rumo a Leste. Mais de 3.000 Km de linha férrea ligavam, então, sem interrupções, os estados norte-americanos do Iowa e da Califórnia. A anterior viagem de seis meses a pé ou de carroça entre os dois territórios encurtava a sua duração para oito dias..Na foto de Russell assomam duas locomotivas, a Júpiter e a n.º 119, a marcarem o matrimónio entre as duas linhas férreas. A acompanhar o feito das máquinas, um aperto de mãos humanizava as distâncias geográficas. Batismo que cumpriu a tradição da "cavilha de ouro", ato cerimonial que marca a conclusão de uma linha férrea. Quatro cavilhas douradas (depois substituídas pelas definitivas em ferro) foram simbolicamente marteladas na união entre os carris e as travessas. No momento em que a última cavilha encontrou os carris, um operador de telégrafo emitiu, rumo às costas leste e oeste do continente, o quarteto de letras que anunciava o término da obra: "done" ("feito"). Ato que contou com a presença de um dos mentores e executores da linha férrea transcontinental, o magnata Leland Stanford, também governador da Califórnia..O homem que em 1891 fundaria, a par da sua mulher Jane Stanford, a Universidade de Stanford, em Palo Alto, Califórnia, não revelava apenas afeição pelo "cavalo de ferro". Na sua propriedade californiana, Stanford cuidava de dezenas de cavalos, entre eles puros-sangues, destinados a competições a trote e a galope. Diligente no que respeitava ao progresso científico, Stanford questionava-se sobre como melhorar o desempenho dos seus equídeos em competição. Para isso, havia que perceber a sua marcha, atividade que se complica quando há que cruzar a relação de movimento entre quatro patas. Nos cavalos, o quarteto de patas permite uma multiplicidade de movimentos, entre eles andar, trotar e galopar. Cada marcha envolve uma ação de patas distinta, cuja rapidez trai o olho humano. A segunda metade do século XIX impunha a questão: o cavalo a galope ergue do solo, em simultâneo, os quatro cascos?.Leland Stanford decidido a desenlaçar o novelo do enigma, contratou em 1873 o fotógrafo que duas décadas antes chegara à América vindo de Inglaterra e que, entretanto, desenvolvera um sistema para a captura instantânea de imagens..Eadweard Muybridge, nascido em 1830 com o nome de batismo Edward James Muggeridge, iniciara carreira de livreiro no país de acolhimento. Em 1866, já como fotógrafo de paisagem e de arquitetura, Muybridge eternizou em imagens o Parque Nacional de Yosemite e a cidade de São Francisco, ambos na Califórnia. Trabalhos que lhe garantiram reconhecimento, aos quais juntou as fotografias de 1871 da expedição do exército dos Estados Unidos ao Alasca e, em 1873, a reportagem fotográfica da guerra que opôs os nativos americanos Modoc às tropas dos Estados Unidos..Na companhia de Stanford, quatro anos mediariam entre as primeiras imagens captadas por Muybridge dos movimentos dos cavalos, e uma fotografia efetiva dessa ação. Em 1877, no Union Park Racecourse, Califórnia, Muybridge obteve um instantâneo do cavalo Occident com as quatro patas no ar. Um sucesso que não mereceu convencimento por parte da imprensa, crendo que os negativos haviam sido retocados. O mês de junho de 1878 foi de afã para a equipa de fotografia contratada por Stanford. Nos seus estudos de movimento, Eadweard recorreu a 24 máquinas fotográficas espaçadas a intervalos regulares, ao longo de uma pista de corrida. Nesta, um cavalo evoluía frente a um fundo quadriculado, rompendo com o seu avanço fios de disparo que controlavam obturadores. A 11 de junho, perante a imprensa, a égua Sallie Gardner avançou frente ao batalhão de câmaras de Muybridge. Finda a corrida, as fotos foram de imediato reveladas e apresentadas aos repórteres presentes. Numa das imagens, Sallie "flutuava" com as quatro patas afastadas do chão. Ainda em 1878, a revista Scientific American, na sua edição de 19 de outubro, fazia capa com 18 fotografias do movimento da égua a ilustrarem o artigo "A Horse Motion Scientifically Determined" ("O Movimento do Cavalo Cientificamente Determinado")..Nos anos subsequentes, as relações entre Stanford e Muybridge degradaram-se, com o magnata da ferrovia a não reconhecer os créditos da descoberta ao fotógrafo. Este, publicaria mais tarde os seus estudos sobre o movimento humano e animal sob a égide da Universidade da Pensilvânia. No mundo das artes, a égua em movimento de Muybridge lançou um debate ao expor a incoerência do galope dos equídeos retratados na pintura. Ao contrário da posição de cavalo de baloiço, com as quatro patas estendidas como é observável nas pinturas a óleo do francês Alfred de Dreux, o animal "voa" juntando sob o abdómen os quatro cascos..Na década de 1880, com o apoio da Universidade da Pensilvânia, Eadweard Muybridge teve a oportunidade de aplicar o seu equipamento fotográfico ao estudo do movimento humano e animal. Em poucos anos, o fotógrafo coligiu mais de 100 mil imagens organizadas em cartões temáticos como atividades como manobras militares, desportos, construção, tarefas domésticas. Imagens também aplicadas numa outra invenção de 1879 de Muybridge, o Zoopraxiscópio. No aparelho, um pequeno disco girava intercalando fotografias do mesmo objeto em posições diferentes, sugerindo movimento..dnot@dn.pt

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