Amanhã a festa começa as 19.30. Nos claustros do Convento das Bernardas, ao som de uma banda de jazz, aguardam-se cerca de 750 convidados, meia Lisboa: políticos, colunistas, escritores, jornalistas, músicos, atores, figuras da rádio e da televisão, empresários variados, reunidos agora para celebrar os 40 anos (antecipados um mês por precaução meteorológica) de um restaurante carismático, palco de negócios, alianças, muitos segredos e cozinha reconhecida - A Travessa..Na sala principal do restaurante, antigo refeitório do Convento das Bernardas do Mocambo, fundado em 1653 e dedicado a Nossa Senhora da Nazaré, Viviane escolhe uma de entre as centenas de fotografias espalhadas pela mesa. Viviane, Virginie e Pedro, ainda longe de ser o pai de Margarida Vila-Nova, posam sorridentes defronte de uma pequena porta. A fotografia inaugural, prova de que a história da casa começa muito antes, no número 27 da Travessa das Inglesinhas, Madragoa..1978. Viviane tem 31 anos. Nascida em Tournai, é casada com um português, Francisco Avelar, e vive em Portugal desde 1969. Fotógrafa desempregada nos anos quentes da revolução, é dela a ideia original: abrir um bar onde se vendesse bom pão, bom queijo e bom vinho. "Bastava-nos isso", recorda, "tanto mais que eu mal sabia cozinhar." A ideia, porém, vai mais longe - a 4 de novembro daquele ano, os três amigos fundam A Travessa. Viviane faz "um paté, receita de um tio talhante, uns tabuleiros com tomate, beringela e curgetes recheadas e umas tartes de maçã". É um sucesso..Vizinha da Emissora Nacional (Rua do Quelhas), A Travessa rapidamente se torna poiso de jornalistas. E os jornalistas trazem políticos. Sobretudo à hora de almoço, longos, até às quatro da tarde. Viviane desfia fotografias: Helena Sanches Osório, Mário Bettencourt Resendes, Alfredo Barroso, Almeida Santos, Rui Vilar, Isabel Soares, as redações e o Parlamento da época representado em força, variação leve, solar, do bar Procópio, cenário criado em 1982 por Alice e Luís Pinto Coelho para conspirações urdidas pela noite. Segredos e confissões que os donos nunca revelarão. Mas, ainda assim, comenta: "Recordo-me que o PRD foi fundado n"A Travessa." Cantina de Maria Filomena Mónica, de António Barreto, de Vasco Pulido Valente e António-Pedro Vasconcelos. "Não era fácil ao António e ao A-PV entrarem por aquela porta tão pequena. Tinham de se dobrar." Ri..Na cozinha manda - mandaria por mais de 25 anos - Maria. "Fazia um steak au poivre como ninguém.".A comida deliciosa.A ementa vai-se sofisticando. Ao steak junta-se, por falta de endívias, a couve-flor gratinada, prato com pouca saída até Viviane o apresentar em francês. Perante a novidade chou-fleur au gratin "é um ver se te avias"..Chegam os paupiettes de veau, "bife enrolado com carne temperada cozinhada com chalotas" acompanhado por batatas fritas..Mesas pequenas, toalhas com quadriculado branco e vermelho, espaço exíguo. "Por vezes, quando as pessoas chegavam sozinhas, pedia-lhes que partilhassem a mesa. Foi assim que casei muita gente." Desde logo os pais da atriz Margarida Vila-Nova. "A Margarida era muito engraçada, andava de mesa em mesa a roubar comida", conta Viviane..O restaurante fecha ao fim de semana. "É uma prisão. A Travessa foi o meu terceiro filho." Porém havia uma folga: "Às sextas-feiras encontrava-me com o Manuel Reis, o Fernando Fernandes e o Zé Miranda, jantava no Pap'Açorda (1981), seguíamos para o Frágil (1982), daqui para os 3 Pastorinhos, passávamos pelo Plateau e acabávamos no Alcântara-Mar." Roteiro icónico de Lisboa, anos 1980..E a fama trouxe a "malta boémia". Músicos, atores, artistas e intelectuais. Em fotografia, passam pelas mãos de Viviane Miguel Esteves Cardoso, Pedro Rolo Duarte, Luís Represas, Rui Veloso, Pedro Ayres Magalhães, muitos artistas plásticos. As enchentes obrigam a obras e, em 1985, passa a acolher 40 pessoas..Em 1994, já sem Virginie e Pedro, Viviane faz sociedade com António Moita, apresentado por um amigo comum. "Alguém que não fazia parte da vida boémia: não bebia nem fumava", descreve a belga..Nascido na Malveira em 1957, António é à época trabalhador portuário com formação em turismo. "Farto de ver navios", dedica-se a tempo inteiro ao restaurante e traz novidade. A Travessa passa a incluir peixe na ementa e a abrir ao sábado com dois pratos únicos: pernil de pata negra e mexilhões. Uma ementa à medida do que havia: "Um fogão com quatro bicos, um forno, uma grelha e duas fritadeiras.".Mudar de casa.Em 2003, são desafiados para se mudarem para o Convento das Bernardas. Viviane dá uma gargalhada: "Sempre disse que com esta vida acabaria num convento e cá estou." Recorda a primeira vez que entrou na sala ampla, outrora refeitório do convento. "Achei isto muito frio, vazio, gelado. O contrário da sala da Travessa das Inglesinhas." Como é que vamos aquecer isto?", pensa e consegue resposta. Com o mobiliário antigo, de madeira, que foi buscar à família e a uma decisão genial: restaurar o forno de lenha e iniciar o fabrico de pão. Os clientes passam a ser recebidos pelo olor a pão quente, que podiam comprar e levar para casa..Os medos de Viviane vão-se dissipando. O Euro 2004 dá novo alento ao negócio, agora com outras responsabilidades e custos. Deixa de abrir ao almoço e a ementa passa a incluir "pratos de cariz português, mas de apresentação internacional"..O restaurante coleciona primeiros-ministros: António Guterres, Durão Barroso e Pedro Santana Lopes - "este quase todas as noites quando era primeiro-ministro", conta António Moita. José Sócrates foi visita regular, mas "não aparece há muito". António Costa é cliente antigo, assíduo e muito querido da proprietária. O CDS não fica atrás - Paulo Portas nos tempos de governo -, Assunção Cristas e Nuno Melo são frequentadores habituais. Miguel Portas aparecia muitas vezes. Francisco Louçã e Catarina Martins, de vez em quando. Carlos Brito, ex-dirigente do PCP, preferia a versão antiga, na Travessa das Inglesinhas. Marcelo Rebelo de Sousa raramente escolhe A Travessa ("apareceu uma ou duas vezes, não mais"). Cavaco Silva nunca por lá foi visto..Mantém jornalistas, ganha muitos homens e mulheres de negócios, muitos turistas. Perde o lado boémio. Outros tempos.."Pensava que teria A Travessa uns dois anos e aqui estou eu há 40", lembra a belga "com muita coisa portuguesa".